Por Kleber Karpov
Nos próximos dias 6 e 7 de agosto, a classe médica deve ir às urnas para eleger, em todos os estados brasileiros, e no Distrito Federal, os nomes dos representantes para compor a gestão do Conselho Federal de Medicina (CFM), entre os anos de 2024 e 2029. No entanto, esse processo eletivo impõe, aos médicos, um olhar pelo retrovisor à sociedade brasileira. Afinal, durante a pandemia do coronavírus SARS-CoV-2 (Covid-19), aproximadamente de 212 milhões de vidas dos brasileiros estiveram nas mãos, das decisões de gestores do CFM. Conselho esse, acusado de alinhamento político ao ex-presidente Jair Messias Bolsonaro (PL/RJ), que pode ter a digital, ainda que indiretamente, ligada à morte de parte dos cerca de 700 mil óbitos ao país.
Covid-19
Poucos meses após a chegada da covid-19 no Brasil, e um dia após Bolsonaro exonerar o ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (16/Abr/2020), por divergências sobre aplicação do isolamento social, o CFM aprovou o Parecer nº 4/2020, publicado em 23 de abril de 2020. O Conselho deu com salvo conduto aos médicos para prescreverem a cloroquina ou hidroxicloroquina, medicamentos sem eficácia e comprovação científica comprovada, às pessoas diagnosticadas com Covid-19.
O Parecer contrariou a Recomendação nº 44, do Conselho Nacional de Saúde (CNS) (20/Abr/2020), de imediata suspensão das orientações do Ministério da Saúde (MS) para uso de medicamentos para tratamento precoce de pacientes. E, o CFM ignorou posteriormente, o anúncio da Organização Mundial de Saúde (OMS), publicada em 25 de maio daquele ano, da interrupção do uso desses medicamentos nos testes para o tratamento da Covid-19, até que fossem revisados os dados sobre sua eficácia e segurança.
Em 25 de março de 2021, a Associação Médica Brasileira (AMB), inicialmente favorável ao CFM, publicou um boletim em que condenou a manutenção do Parecer. Para a AMB, era patente a falta de eficácia comprovada da administração de diversos medicamentos contra a Covid-19. “Reafirmamos que, infelizmente, medicações como hidroxicloroquina/cloroquina, ivermectina, nitazoxanida, azitromicina e colchicina, entre outras drogas, não possuem eficácia científica comprovada de benefício no tratamento ou prevenção da COVID-19, quer seja na prevenção, na fase inicial ou nas fases avançadas dessa doença, sendo que, portanto, a utilização desses fármacos deve ser banida”.
O CFM chegou a ser processado, em 2021, pela Defensoria Pública da União (DPU), por danos morais coletivos no valor mínimo de R$ 60 milhões. Para o defensor regional de direitos humanos em São Paulo, João Paulo Dorini, o Conselho foi um dos “responsáveis pelo enfrentamento errático da pandemia no Brasil por ter dado suporte técnico-científico ao uso de ‘kit Covid’ e de tratamento precoce”. Na ação, Dorini apontou ainda. “Com o ainda vigente Parecer nº 4/2020, o CFM contribuiu decisivamente para o resultado catastrófico da gestão do enfrentamento à pandemia no Brasil”.
Autonomia do médico
Vale ressaltar uma intervenção, no que tange a aprovação do Parecer nº 4/2020, apontado pela a Conselheira do CFM, Rosylane Rocha, então presidente da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT), estava em causa, a autonomia do médico em prescrever tais medicamentos.
Discurso esse, sustentado por Rosylane Rocha, em depoimento à Audiência Pública realizada pela Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara dos Deputados (04/Nov/2021). Ocasião em que o país registrava 610.323 mil óbitos por Covid-19 acumuladas, desde o início da pandemia no Brasil, com um total de 243 mortes em um intervalo de 24 horas. “O que o CFM está fazendo é assegurar a autonomia do médico, seja para essas medicações e para tantas outras que antes da pandemia vinham sendo discutidas”, disse.
17 mil óbitos com uso de hidroxicloroquina
Importante relembrar um estudo publicado na revista Biomedicine & Pharmacotherapy, realizado por pesquisadores franceses que apontam que aproximadamente 17 mil pessoas, da Bélgica, Espanha, França, Itália, Turquia e Estados Unidos, podem ter ido a óbito, pelo uso de hidroxicloroquina, no tratamento da Covid-19. A pesquisa foi conduzida e teve como principal autor, o médico Jean-Christophe Lega, responsável por analisar os dados relativos a primeira onda da pandemia, entre os meses de março e julho de 2020, com o registro de um total de 752.817 de mortes nos seis países.
Nesse período o Brasil registrou 59.656 óbitos. Porém, é importante ressaltar que o país, não contou com nenhuma pesquisa para apontar eventuais óbitos decorrentes da administração de hidrixicloroquina ou cloroquina.
Restrição à autonomia do médico
Se por um lado o CFM manteve a autonomia dos médicos para a prescrição dos medicamentos, sem comprovação científica de eficácia. Por outro, o Conselho, em 15 de outubro de 2022, endureceu o tom, com a publicação da Resolução CFM nº 2.324/22, em contraponto a outra norma de 2014. A alteração tentou restringir a prescrição, por médicos, do canabidiol (CBD), feito a partir da planta Cannabis ativa (maconha). Isso para tratamentos de epilepsias de criança e adolescentes refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa.
Como argumento, o CFM apontou a alta no uso da cânabis medicinal, entre 2017 e 2021, com pedidos de importação a saltar de 2.101 para 32.416. Isso impactado por força da publicação da resolução da RDC Anvisa nº 327/2019, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A RDC permitiu, também, a venda autorizada em drogarias e farmácias no país.
O caso se tornou, alvo de críticas de especialistas e acabou por levar o Ministério Público Federal (MPF), a instaurar um Procedimento Preparatório (PP), dois dias depois, para apurar a compatibilidade da Resolução do CFM com o direito social fundamental à saúde, nos termos da Constituição Federal. Em 24 de outubro, o CFM, recuou e sustou a Resolução.
Atualmente, há indicações de canabidiol e outros derivados da maconha medicinal para o tratamento de mais de 20 diferentes condições médicas, entre elas, depressão, dor crônica, dor oncológica, esclerose múltipla, Parkinson e Alzheimer. A prescrição ocorre no modo off-label. O médico avalia o risco-benefício do uso e assume a responsabilidade pela indicação.
Pesquisa online
No roll de ‘inovações’, em janeiro desse ano, o CFM voltou a se tornar alvo de críticas por equiparar crenças pessoais à ciência. O Conselho realizou uma pesquisa online, no site da entidade, para avaliar a opinião da classe médica sobre a obrigatoriedade da vacinação contra Covid-19, de crianças de seis meses, a menor de cinco anos, .
No formulário, o CFM justificou a condução da pesquisa para “entender a percepção dos médicos brasileiros” sobre a obrigatoriedade da imunização de crianças, além de afirmar ser a opinião dos profissionais de saúde “fundamental para enriquecer a análise e contribuir para a tomada de decisões futuras”.
Iniciativa essa, criticada pela Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm) por equiparar, com a pesquisa, crenças pessoais dos médicos à ciência, algo com potencial de gerar insegurança na comunidade médica e afastar a população das salas de vacinação. “A SBIm entende que a pesquisa realizada pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) não trará nenhum benefício à sociedade”, afirma instituição científica.
Aborto legal
Mais recentemente (3/Abr), o CFM se envolveu em uma nova polêmica ao publicar Resolução nº 2.378, para tentar impedir que médicos realizem abortos, previstos na legislação, de grávidas com gestações acima de 22 semanas decorrentes de estupro, a chamada assistolia fetal para interrupção de gravidez.
No caso em questão o MPF ajuizou uma Ação Civil Pública junto ao Tribunal Regional Federal (TRF) e obteve decisão favorável à suspensão da resolução (22/Abr). Em 18 de Maio, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes também endossou a suspensão da decisão do CFM, que ainda deve ter decisão final do pleno do STF.
Perdeu mané?
Desde a manifestação do presidente do Conselho, José Hiran da Silva Gallo, ao publicar no site do Conselho Regional de Rondônia (Cremero), que “A esperança venceu o medo“, em 05 de novembro de 2018, em alusão a vitória de Bolsonaro contra o então adversário, o candidato Fernando Haddad (PT/SP), o CFM coleciona ações que reforçam a postura de médicos focados na utilização política do Conselho.
Em outra demonstração, a própria conselheira do CFM, Rosylane Rocha, então presidente interina do Conselho, se tornou alvo de manchetes da grande mídia, por manifestações pró-Bolsonaro. Inclusive, em apoio aos atos golpistas do 8 de janeiro, ao publicar nas redes sociais fotos, como textos ‘sugestivos’ dos atos antidemocráticos da depredação dos poderes da República.
Episódio esse que levou o CFM, após repercussão, a publicar, no dia seguinte, nota de repúdio as invasões de prédios públicos ocorridas em Brasília. (Veja Aqui). Rosylane é candidata, pelo Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal (CRM-DF), pela Chapa 1 (Veja Aqui) e tenta manutenção no CFM e tem na suplência o médico Sérgio Tamura.
No DF, além de Rosylane na Chapa 1
Outras duas chapas devem concorrer. Na Chapa 2 (Veja Aqui), e ainda, ‘ilesa’ a médica Beatriz Mac Dowell disputa como titular e tem o médico Ricardo Luiz de Melo Martins na suplência. Beatriz Mac Dowell é formada pela Universidade Federal Fluminense – UFF; mestre em Gestão e Política em C&T – Centro de Desenvolvimento Sustentável – UnB; Doutora em Saúde Coletiva – Faculdade de Ciências da Saúde – UnB
A Chapa 3 (Veja Aqui) encabeçada por Farid Builtrago, médico ginecologista, presidente do CRM-DF, que tem como suplente a a médica Isadora Calvo. Builtrago foi critico às medidas de isolamento social impostas pelo governador do DF, Ibaneis Rocha (MDB)(Veja Aqui), durante o enfrentamento à pandemia da Covid-19. Também defendeu a normativa do CFM em relação a prescrição de cloroquina e hidroxicloroquina como meio de combate à doença, sob alegação de se garantir a autonomia que médicos para prescrição de medicamentos.
Politização do CFM
Tal reflexão se faz mais presente, em especial, ao se avaliar o cenário da disputa entre os concorrentes, muitos manifestamente claros quanto as intenções ao apresentarem em primeiro plano, como opções no processo eletivo, serem posição anti-petista ou anti-esquerdista. A exemplo de publicação do médico infectologista, Francisco Cardoso, na rede social X (Antigo Twitter), que concorre em uma das chapa do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp).
“Atenção médico, as eleições para o CFM 2024 estão chegando e o PT está unido no Brasil para botar os esquerdistas no controle da medicina brasileira. Querem aparelhar a medicina.” diz em postagem que chega a listar as “chapas de direita para o CFM”, ao observar que “todas as chapas acima são garantidamente contra o PT, contra o Mais Médicos, contra a abertura de mais escolas médicas, contra a invasão do ato médico e a favor da vida.”, publicou Cardoso.
No caso concreto da Chapa 2 em que concorre, chamou atenção de PDNews, uma das propostas, o “combate à Falsa Ciência” em “oposição à chamada ‘ciência à la carte’ e promoção de debates médicos baseados em evidências robustas.”. Isso em decorrência do histórico alocado a atual gestão do CFM, a quem o candidato sugere a manutenção, ao menos ideológica, da classe médica.
Classe médica
De acordo com dados da Demografia Médica 2024 do CFM, o Brasil, conta com 575.930 médicos ativos, apontada por ser uma das maiores quantidades do mundo e contabiliza uma proporção de aproximadamente 2,81 médicos por mil habitantes, a maior já registrada na história nacional. No DF, cerca de 20 mil médicos devem optar pelos representantes no Conselho.
Médicos esses que devem votar para eleger os novos gestores do CFM, para tratar sim de demandas, divergências, discordâncias e fiscalizações pertinentes a atuação da classe médica e não em detrimento do governo de plantão.
Em tempo
Nos Estados Unidos, em agosto de 2023, a médica, Sherri Tenpenny, acusada de disseminar mentiras e teorias da conspiração, com denúncias realizadas em junho de 2021, sobre as vacinas contra a Covid-19 perdeu a licença profissional após uma decisão do Conselho Médico do Estado de Ohio. No Brasil, querem perpetuar à frente do órgão de classe responsável por zelar ela lisura da classe médica para fazer politicagem.