A Falácia do Instituto Hospital de Base
Júlio Marcelo de Oliveira*
A Câmara Legislativa discute a proposta do governo do DF de criação do Instituto Hospital de Base de Brasilia, um serviço social autônomo que teria a função de gerir o mais importante hospital da rede de saúde do DF. Alega o GDF que esse formato daria agilidade e flexibilidade para a gestão do hospital e que justamente a falta desses atributos é que seria a causa da precariedade do serviço de saúde prestado no DF.
A proposta é inconstitucional, equivocada nas premissas e nas conclusões e oferece muito mais riscos que vantagens. Os serviços sociais autônomos verdadeiros, aqueles que congregam categorias econômicas como a indústria (SESI, SENAI), o comércio (SESC, SENAC) e outros, são custeados com contribuições parafiscais específicas, incidentes sobre as folhas de salário. Dada a sua conformação histórica, sua natureza voltada para serviços sociais de suas categorias e forma de custeio, têm características muito peculiares: não integram a administração pública, não realizam concursos públicos, mas apenas procedimentos seletivos simplificados, adotam regulamento próprio de compras e contratações, seus funcionários são regidos pela CLT.
Essas características, entretanto, não podem ser contrabandeadas para entidades tipicamente prestadoras de serviço público, custeadas com tributos integrantes do orçamento de um ente federado. Quando a administração resolve descentralizar alguma de suas unidades da administração direta, o faz pela via da autarquia ou da fundação pública, regidas pelo direito público, observando a lei de licitações e os concursos públicos, garantidores da impessoalidade e da meritocracia nas contratações. Pretender vestir a “roupa” de serviço social autônomo numa entidade que, por sua própria natureza, integra a administração pública do DF é tentar fraudar a Constituição Federal para fugir de seus controles, que visam concretizar os princípios da moralidade e da impessoalidade.
Agilidade e flexibilidade muitas vezes são buscadas como meio para agilizar e facilitar não a gestão, mas a corrupção e a captura política da instituição como cabide de emprego de amigos e correligionários. Quem quiser se habilitar à condição de gestor público tem que fazê-lo segundo as normas da Constituição Federal.
Gerir uma rede de saúde não é tarefa simples, mas não impossível. A proposta de transformação do HBDF em serviço social autônomo é uma confissão de incapacidade gerencial da saúde. É como se o problema da saúde fosse apenas o regime jurídico dos servidores e o regime de compras e contratações pela Lei 8.666.
De fato, a saúde no DF tem problemas de gestão, mas não necessariamente de modelo de gestão. Tanto pelo modelo da administração direta, como pelo modelo de fundação ou autarquia, formas canônicas de prestação de serviços públicos, ela pode ser prestada com qualidade e agilidade.
Afirmar que a mudança de modelo para serviço social autônomo transformará a saúde como vara de condão é enganar a população. Um hospital terciário que funcione com qualidade e eficiência é um desafio tanto para a gestão pública como para a privada. Requer processos bem desenhados, profissionais comprometidos e bem treinados, adequado suprimento de materiais, atualização e manutenção dos equipamentos. Não bastam médicos qualificados, toda a equipe tem de ser de excelência, enfermeiros, fisioterapeutas, funcionários do refeitório, controle da farmácia, limpeza, segurança, triagem. Trata-se de uma operação complexa, que requer pessoal qualificado.
Mesmo na iniciativa privada, são poucas as instituições de excelência. Isso mostra que não basta adotar, como mero fetiche, um modelo mais próximo da iniciativa privada para que um hospital público passe a funcionar com melhor qualidade e eficiência. É preciso gente bem qualificada e muito comprometida para fazer acontecer. Não é tarefa para amadores.
Vejam o exemplo da Rede Sarah, sempre invocado pelos defensores de modelos mais flexíveis. Há mais de vinte e cinco anos ouve-se o canto da sereia dos que defendem fórmulas mágicas para a saúde e, no entanto, não se vê, neste país tão grande, em mais de um quarto de século, surgir nenhuma outra Rede Sarah. Engana-se quem pensa que o sucesso da qualidade da Rede Sarah deriva do fato de ela estar organizada como serviço social autônomo. Isto é de uma simploriedade absoluta. Seu sucesso resulta fundamentalmente da construção de uma cultura de entidade verdadeiramente orientada para o paciente, não para a conveniência de horário do médico, não para o corpo dirigente, não para os fornecedores, mas para o paciente.
Para que o médico trabalhe bem e cumpra sua jornada, não precisa ele estar regido pela CLT, basta que ele seja respeitosamente cobrado e que o corpo dirigente dê o exemplo e não seja corporativista. Para que as compras sejam feitas a tempo e hora, basta haver planejamento e ação.
Para quem é competente e bem intencionado, o formato da administração direta, autárquica ou fundacional não é obstáculo para a boa gestão. Para quem é incompetente ou mal intencionado, o formato da iniciativa privada facilitará o roubo do dinheiro público e a prática de nepotismo. Enfim, não temos nada a ganhar com isso.
* Procurador do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União (TCU)
Fonte: Correio Braziliense