“Clínica deveria ter acionado o SAMU para fazer o traslado de Sarah até um hospital para internação”, acusa o médico
Por Kleber Karpov
Na manhã de quinta-feira (21/Set), sob sigilo de identidade, um médico denunciou ao Política Distrital (PD) a negligência, por parte da Secretaria de Estado de Saúde do DF (SES-DF), o que levou à óbito, Sarah Yasmim Santiago da Silva, 14 anos. Após dar entrada na Clínica da Família da 314 de Samambaia (18/Set), a unidade emitiu uma Guia de Consulta, em que informou a necessidade de internação e entregou à família para que a levassem Yasmim a um hospital. Sem êxito, por falta de vagas, a adolescente morreu dois dias depois.
“Uma menina de 14 anos, com diagnóstico de diabetes, tipo um, começou a passar mal no domingo a noite, procurou atendimento em diversos lugares, na segunda-feira foi para a clínica da família, foi atendida, recebeu guia de consulta para internação, para investigação, enfim, avaliação e conduta. Essa mãe percorreu todos os hospitais públicos do DF e essa menina, infelizmente, faleceu. Faleceu ontem, as 22 horas, na sua casa, foi atendida pelos bombeiros e o SAMU e é muito triste. É um capítulo tristíssimo de nossa história. Não foi acolhida. Foi atendida, mas não foi feito nem a GAE [Guia de Atendimento de Emergência]. Estou com os depoimentos da mãe, que eu conheço, mas infelizmente, não conseguiu me achar onde eu atendo.”, relatou o médico.
Negligência
De acordo com o médico, ao receber a paciente e, após constatar a necessidade de internação, a unidade deveria ter acionado o Serviço de Atendimento Médico de Urgência (SAMU) e se responsabilizar por garantir que fosse conduzida e internada em uma unidade hospitalar.
Para o médico, ao entregar a Guia de Consulta para os pais da adolescente e sugerir que, com aquele documento, a manicure, Tatiana Barbosa Santiago, 37 anos, mãe de Sarah, conseguiria internar a filha em qualquer hospital, diante da falta de médicos e de leitos nos hospitais, a SES-DF deixou a família à mercê da própria sorte.
“Ao receber a pequena Sarah, constatado o quadro em que estava, se na própria avaliação e conduta foi diagnosticado a necessidade de internação da paciente, a própria unidade deveria ter acionado o SAMU e não repassado à família a responsabilidade de localizar um hospital para internar a Sarah. No momento em que fizeram isso, praticamente assinaram o atestado de óbito daquela criança.”, disse o médico.
Classificação de Risco
Ainda segundo o médico, o caso evidencia a negligência por parte da SES-DF, ao tentar impor um protocolo de atendimento, mas sem as condições necessárias para que o atendimento seja oferecido à população. O profisional de saúde denunciou ao PD a falta de técnico em enfermagem, na Clínica de Família da 314 em Samambaia, com qualificação para realizar a triagem, onde se define a classificação de risco do paciente.
“A Secretaria implantou o Programa Saúde da Família mas as unidades estão totalmente desestruturadas. Na clínica em que aquela criança foi atendida, não havia, naquele momento, enfermeiro capacitados para fazer o Sistema Manchester de Classificação de Risco. Não sei se você sabe mas os enfermeiros precisam passar por uma formação específica para realizar a classificação de Manchester de modo a poder estabelecer a classificação de risco do paciente. A classificação de Manchester é dinâmica, o sistema não foi feito para mandar o paciente ir embora. E as vezes o paciente chega na unidade de saúde, onde pode aparentar não estar tão mal, mas o profissional preparado sabe que o quadro pode evoluir para uma outra classificação. As vezes a classificação verde pode se tornar amarela, e uma amarela pode se tornar, rapidamente, um laranja e até uma vermelha. É preciso que fique claro que os enfermeiros e técnicos da unidade são ótimos profissionais, mas, como eu disse, não havia enfermeiro qualificado em Sistema de Classificação Manchester. Se houvese, teriam condições de fazer essa avaliação e talvez acionassem o SAMU para garantir a internação da Sarah. Mas infelizmente, ela [Sarah] não teve esse atendimento qualificado na clínica e o resultado infelizmente foi a morte dessa criança.”, disse.
Com a voz embargada, o médico desabafou:
“A Sarah não pode ter morrido em vão, nós temos que denunciar para que isso não aconteça. Que pelo menos tenha a triagem, tenha acolhimento dos pacientes. É muito triste. Eu como médico fico arrasado, de não poder ter tido a oportunidade de atender a Sarah como já atendi antes, e saber que a morte dessa criança poderia ter sido evitada.”.
A família
O médico repassou ao PD, uma sequências de áudios, recebidos de Tatiana, mãe de Sarah, em que relatou ao amigo, com riqueza de detalhes a saga para tentar conseguir internar a adolescente, após receber a Guia de Consulta na Clínica da Família 314 de Samambaia.
Confira o relato de Tatiana
PD conversou com Tatiana que desolada, explicou que confiou que Sarah fosse internada no primeiro hospital, por ter recebido na Clínica Saúde da Família 314 de Samambaia, a Guia de Consulta.
“Eles me deram um documento dizendo que eu poderia internar ela [Sara] em qualquer hospital, mas eu não consegui internar ela em nenhum hospital. Eu confiei nesse documento.”
Negligência
Tatiana também apontou a negligência por parte da SES-DF. De acordo com a mãe de Sarah, dos vários hospitais em que passou para tentar internar a filha. A única unidade em que encontrou médico foi no Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB), onde seis pediatras faziam atendimento.
Porém, de acordo com Tatiana, por se tratar de uma adolescente, no HMIB também lhe foi recusado atendimento. “Nunca pensei que ia passar por uma situação dessa, enterrar um filho, não é fácil, é muito complicado. Ainda mais eu que sou muito apegado com meus filhos, onde eu vou eu levo os dois.”.
Tatiana encaminhou ao PD, uma foto e um vídeo que mostram o quanto a pequena Sarah definhou, em apenas 48 horas, por falta de atendimento adequado por parte das unidades de Saúde da SES-DF.
Por ser portadora de diabetes tipo um, PD questionou o motivo da doença repentina da pequena Sarah, se poderia estar relacionada com a doença, ou se houve dificuldades de ter acesso às medicações.
Tatiana respondeu que pega os dois tipos de insulina na Farmácia de Alto Custo, confirmou ter dificuldades recentes para obter o medicamento, mas, que por faltar no DF, conseguiu obter a insulina, em Santo Antônio do Descoberto (GO), município vizinho ao DF.
“A gente não sabe o que houve exatamente, ela toma as medicações, tudo certinho, nos não conseguimos aqui, mas pegamos em Santo Antônio. Inclusive tenho insulinas que vou fazer doações.”
A mãe de Sarah não soube explicar ao certo o motivo da morte da adolescente. “O IML [Instituto Médico Legal] colocou como morte “súbita, diabete mélito insulina dependente”. Com a voz embargada e ainda preocupada com o sofrimento que a pequena Sarah foi submetida, Tatiana, declarou que não permitiu a realização de autópsia no IML. “Eu não permiti aquele exame que faz no IML porque ela já tinha sofrido muito e não achei certo cortar ela para fazer esse exame.”, disse.
Dois dias
Esse foi o tempo entre o atendimento inicial na Clínica da Família 314 de Samambaia (18/Set), serviço esse, implantado pelo atual secretário de Estado de Saúde do DF, Humberto Lucena Pereira da Fonseca. Programa esse, segundo o médico que atua nesse tipo de atendimento, em mais de uma unidade da SES-DF, implantado sem critérios e imposto aos servidores da Secretaria, “sobretudo aos médicos”.
Esse foi o tempo necessário para constatar, de acordo com um vídeo encaminhado ao PD, por Tatiana, para demonstrar que a pequena Sarah, com apenas 14 anos, definhou até morrer, após negligência e omissão do Estado, em oferecer atendimento à adolescente, que poderia, hoje, estar com os pais e se divertindo com o irmão de 12 anos, segundo a mãe, com quadro depressivo.
“O irmão dela tem 12 anos, ele parou de comer, não fala com ninguém e nós estamos preocupados. Antes disso tudo acontecer e eu perder minha filhinha, nós havíamos prometido comprar um violão para ele. Eu vou tentar sair com ele hoje [22/Set], e levar ele para comprarmos o violão, para ver se ele se distrai um pouco. Ele está sentindo muito tudo isso.”, disse desolada.
Doação
A mãe da pequena Sarah, como último ato de consolo vai fazer a doação das caixas que ficaram sem uso, de Humulin 100Ul/ml, seis do tipo regular e outras três, do mesmo produto, porém, NPH. Ainda segundo Tatiana há pacotes de seringas lacradas também para ser doado.
Justiça
Embora nada traga Sarah de volta, tanto o médico quanto a mãe de Sarah pretendem denunciar o caso ao Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT). Segundo o médico, “a Justiça e as autoridades precisam fazer alguma coisa para mudar esse cenário de mortes evitáveis. O profissional de Saúde explicou que dados demonstram que à política adotada por Humberto Fonseca, reduziu em 70% a capacidade de atendimento e, o de óbitos permanece subindo.
Mortes evitáveis
Denúncias do presidente do Sindicato dos Médicos do DF (SINDMÉDICO-DF), Gutemberg Fialho, apontam que desde 2016 houve aumento significativo das mortes evitáveis no DF. Procurado por PD, o sindicalista ratificou a existência do problema. “O caso dessa criança é mais um, dos tantos outros que temos denunciando diariamente, esse governo está deixando os pacientes morrerem por falta de gestão, por falta de oferta de assistência adequada à população.”, afirmou.
Fialho também criticou a forma de implantação do Projeto Saúde da Família e outras demandas por parte de Humberto Fonseca.
“Desde o início que o governo veio com o discurso de implantar o Programa Saúde da Família, da forma que sugeriram, nos criticamos. Primeiro porque entendemos que a visão do secretário de saúde de apenas reforçar a atenção primária é totalmente equivocada. Sempre denunciamos que as pessoas estão morrendo nas emergências, por falta de médicos, de medicamentos, de estrutura, pois o governo parece se concentrar apenas em acabar com a saúde pública com esse projeto eleitoreiro do Instituto Hospital de Base e se esqueceu das demais unidades. Segundo, que a própria estruturação do PSF também foi totalmente equivocada. Todos sabem que o DF não tem médicos da família o suficiente e tampouco médicos generalistas. Todos assistimos o senhor secretário da Saúde tentar tirar médicos de diversas especialidades dos hospitais, das UPAs para tentar levar para o Saúde da Família, algo que sempre criticamos. Talvez não seja por outro motivo que ao recorrer à mídia para anunciar a reinauguração do Pronto Atendimento Infantil no Hospital do Gama, dois dias depois a coisa começou a desmontar. Pois não há gestão na saúde, temos uma equipe despreparada e não por outro motivo as mortes evitáveis no ano passado aumentaram em mais de 15%”, disparou Fialho.
A outra parte
PD entrou em contato com a SES-DF para apurar a denúncia do médico e da família, na manhã de sexta-feira (22/Set). Porém, até o momento, a pasta se limitou a retornar “recebemos sua demanda e, assim que possível, daremos o retorno.”.