O jornal O Estado de São Paulo publicou esta semana uma matéria rica em detalhes sobre a questão da abertura de cursos de Medicina em regiões fronteiriças ao Brasil. São cerca de 65 mil pessoas frequentando essas escolas, muitas das quais não têm sequer autorização de funcionamento e sofrem de deficiência de estrutura generalizada. O contingente de estudantes nos países vizinhos corresponde a um terço do total dos matriculados no Brasil. Esse número chegou a esse patamar em função da expectativa de se poder exercer a Medicina sem registro profissional por meio do Programa Mais Médicos, ora em fase de substituição pelo Médicos pelo Brasil.
A questão é preocupante e complexa, mas o cônsul brasileiro em Pedro Juan Caballero, no Paraguai, Vitor Hugo de Souza Irigaray fez a síntese do aspecto mais importante: “precisamos de médicos bem formados Quem está em jogo não é o médico, é o paciente.”
Só Pedro Ruan Caballero, tem 12 mil estudantes de medicina brasileiros – e o maior hospital da região não tem mais que 90 leitos. O ensino da medicina envolve um conjunto de atividades teóricas e práticas. A falta da vivência em unidade de saúde – o que chamamos de internato – é grave e indica que a formação não é adequada.
É premente a necessidade de articulação entre os Ministérios da Educação, da Saúde e das Relações Exteriores para colocar ordem na situação. De um lado, existe a expectativa do estudante que se aventura a fazer cursos suspeitos e sua família – expectativa que pode ser frustrada. De outro lado está o paciente brasileiro que pode vir a ser atendido por pessoa sem a devida qualificação – que bom resultado pode advir disso?
Já temos problemas com as escolas brasileiras, que não estão sendo adequadamente fiscalizadas e avaliadas pelo Ministério da Educação. Vimos, há poucos dias, quando foi noticiado o estouro de um esquema de fraudes em uma universidade particular de Fernandópolis (SP) na Operação Vagatomia, que a Polícia Federal é quem está fazendo alguma fiscalização. A omissão do MEC deu ensejo à corrupção e ao crime e com um viés transnacional, pois o esquema criminoso envolve também fraude em revalidação de diplomas de Medicina obtidos no exterior. Isso é crime organizado.
É um esquema que não se restringe a corrupção de empresas privadas e agentes públicos. Envolve famílias, sonhos e expectativas de futuro de jovens que sonham se tornar médicos e, lá na frente, também afeta a saúde do paciente. É corrosão do caráter e subversão de um dos valores mais importantes na prática médica: a ética.
Ao mesmo tempo que esse teatro bufo se desenrola dentro e ao redor das fronteiras brasileiras, representantes das áreas da Educação e da Saúde se reúnem para discutir os rumos (agora indefinidos) dos programas de residência médica brasileiros, que formam os médicos nas diversas especialidades. Eles existem um número insuficiente, sem definição de orientação estratégica para atendimento das necessidades do país e ainda estão prejudicados pela insuficiência de investimento no SUS, que além de ser o maior programa social para a população brasileira é responsável pela formação e aperfeiçoamento da maioria dos nossos profissionais.
Atropelando os fatos e a razão, no Congresso Nacional há um esforço de diversas correntes para que se permita a participação de pessoas sem a revalidação de diplomas e sem registro profissional nas alterações que estão sendo propostas ao Programa Médicos pelo Brasil e com a possibilidade de que os estados façam isso de maneira indiscriminada, criando seus “Mais Médicos” locais. Barraram até a emenda que garantia a avaliação regular dos cursos de Medicina em funcionamento no país. Ainda querem dar a instituições de ensino sem essa avaliação a prerrogativa de aplicar o exame de revalidação de diplomas obtidos no exterior. Parece uma versão atualizada da Comédia dos Erros, só que a versão que está sendo escrita não termina bem, como na obra de Shakespeare. Acaba muito mal.
Dr. Gutemberg Fialho é Médico e advogado,
presidente da Federação Nacional dos Médicos
e do Sindicato dos Médicos do Distrito Federal