Pelo menos quatro pacientes morreram em outubro. Outro menino perdeu a vida porque não havia ambulância para transferi-lo de hospital
Por Fernando Caixeta
A saga que pais e mães de filhos com algum tipo de doença grave enfrentam envolve sacrifício, muita luta, e é marcada pelo suplício da espera por justiça. Mesmo com decisões judiciais nas mãos, é dura a espera por uma vaga em Unidade de Terapia Intensiva (UTI) para que os pequenos possam ser submetidos a uma cirurgia e, assim, conseguirem sobreviver. Enquanto bebês com poucos meses de vida aguardam pela chance de operar um órgão malformado, alguns não resistem ao tempo de espera e acabam morrendo antes mesmo de terem a oportunidade de passar pelas mãos da equipe médica.
Apenas no mês de outubro, ao menos quatro crianças com síndrome de Down morreram à espera de um leito de UTI, ou imediatamente após serem transferidas. Dos casos levantados pelo Metrópoles, a maioria dos pacientes tinha alguma cardiopatia e devia ser transferida para o Instituto de Cardiologia do Distrito Federal (ICDF).
Em comum, as famílias desses meninos e meninas recorreram à Defensoria Pública do DF (DPDF) e conseguiram liminares do Judiciário, obrigando o Distrito Federal a conseguir um leito na rede pública, conveniada ou a pagar os custos em hospital particular. Neste ano, a DPDF defendeu 40 causas envolvendo pedidos de internação de crianças.
Entre idas e vindas, a Justiça chegou até mesmo a obrigar o sequestro de bens e a prisão de gestores da Secretaria de Saúde (SES), em processo que corre em segredo. A prisão não chegou a se concretizar, mas foi somente após essa medida drástica que a pequena Bárbara Ramos, de 11 meses de vida, conseguiu transferência para um leito do ICDF e está com cirurgia marcada para esta sexta-feira (01/11/2019), a depender das condições de saúde da menina, que teve uma pneumonia recente e esteve febril ao longo da semana.
“Descobrimos que ela tinha síndrome de Down quando ela nasceu. E logo soubemos que sofria de uma cardiopatia congênita grave, mas nos foi pedido que esperássemos para ver se, com o desenvolvimento dela, um canal que estava aberto e provocava o problema de saúde iria se fechar. Além de não fechar, aumentou. Foi quando veio a indicação para cirurgia imediata”, relata Paloma Regina Ferreira de Menezes, 26 anos, mãe de Bárbara.
Desde que a recomendação de urgência na realização da cirurgia foi cravada pelos médicos, se foram mais de oito meses até que, finalmente, a menina conseguiu a vaga.
Morte na espera
Mesma sorte não teve a pequena Ana Beatriz Oliveira (foto em destaque), 8 meses. Embora estivesse em uma UTI, ela não resistiu por tempo suficiente para fazer um procedimento de correção nas válvulas do coração.
Filha de moradores de Padre Bernardo (GO), no Entorno de Brasília, a menina passou 40 dias internada na unidade de terapia intensiva pediátrica do Hospital Regional da Asa Norte (Hran) e seguiu para uma UTI no Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib). Um dia após dar entrada na nova unidade, sofreu uma parada cardiorrespiratória e acabou falecendo.
Ana Beatriz aguardava vaga em um dos 10 leitos pediátricos do ICDF para poder passar pelo procedimento. Ela nasceu com síndrome de Down e Defeito de Septo Atrioventricular Total, problema que afeta o bombeamento de sangue para o corpo.
Para Cléo Bohn, diretora da associação DFDown, que reúne pais de criança com a trissomia do cromossomo 21 no DF, a dificuldade começa num simples atendimento ambulatorial ou no pronto-socorro.
“Não tem atendimento preferencial, então, quando o pai ou a mãe vai a um hospital e recebe a pulseira amarela, eles vão embora, porque sabem que não dá para esperar, em uma emergência, por quatro, cinco, seis horas para que a criança com Down seja atendia. Nós acompanhamos muitos pacientes e temos relatos de mães que foram três vezes ao hospital e desistiram de serem atendidas”, lamenta a diretora da entidade.
Quando o assunto é UTI, segundo Cléo, a situação é ainda mais dramática. “Nós tínhamos três processos com decisão liminar e nenhum dos três pacientes estava na fila de regulação pela vaga. Havia sete na fila e nenhum tinha síndrome de Down. É importante que a criança opere antes dos 6 meses de vida, que é quando começam muitas mudanças no corpo do bebê. O problema é que não tem UTI, deixaram tudo concentrado no ICDF, e os outros hospitais não possuem capacidade de fazer esse tipo de procedimento”, detalha.
Transparência
Várias representações foram protocoladas perante o Ministério Público de Contas e o Tribunal de Contas do DF (TCDF) questionando a terceirização das cirurgias cardíacas para o ICDF. A Corte também já recebeu pedidos de apuração quanto à quantidade de médicos cardiologistas na rede pública; quantidade de pacientes à espera de cirurgia cardíaca; e análise de economicidade e legitimidade da terceirização dos serviços de cardiologia da Secretaria de Saúde.
Tramita no TCDF um processo que trata da auditoria de regularidade na SES com o objetivo de examinar a contratação e a execução dos serviços de terapia intensiva. No entanto, os autos não tratam especificamente de UTIs pediátricas, mas dos leitos intensivos de um modo geral.
Falta de ambulância
Aos 11 anos, depois de se engasgar com um pedaço de tapioca, Rafael Guimarães foi levado pela família para o Hospital Regional de Planaltina (HRP), unidade de saúde mais próxima de onde ele e a família moram. O menino não sofria de problemas cardíacos, mas teve uma parada cardiorrespiratória devido ao engasgo e precisava ser submetido imediatamente ao Instituto Hospital de Base (IHBDF). Os pais da criança conseguiram um leito de UTI no Base, mas não havia ambulância para transferi-lo.
Depois de agonizar por quase três dias, um helicóptero do Corpo de Bombeiros pousou no HRP e fez o transporte. Debilitado, ele não resistiu e morreu nesta sexta-feira (31/10/2019). A mãe, Joelma Alvares, chegou a fazer um vídeo, no qual aparece emocionada, pedindo providências das autoridades.
Assista:
https://www.facebook.com/joelma.alvaresgustavo/videos/1491342227683751/
Integrantes da equipe médica confidenciaram à família que o menino teria todas as condições de sobreviver se tivesse sido levado ao Instituto Hospital de Base (IHBDF) logo após o pedido de transferência. “Isso acontece o tempo todo. Às vezes temos o mandado judicial, tem a vaga, mas não tem a ambulância e o médico para levar”, lamenta a diretora do DFDown.
Outro lado
Por meio de nota, a Secretaria de Saúde informou que dispõe de 426 leitos de UTI, entre próprios, contratados e conveniados. Diariamente, a SES publica informações referentes a situação dos leitos de terapia intensiva, como a hora da ocupação e o tipo existente. Nessa quinta-feira (31/10/2019), 86 pacientes, entre crianças e adultos, esperavam na fila de regulação.
Dois pacientes neonatais (0 a 28 dias) e um pediátrico (até 12 anos) aguardavam internação em UTI. Dos que esperavam transferência para um leito com suporte especializado, são um pediátrico e dois neonatais.
As cirurgias cardíacas são feitas apenas no ICDF, onde a SES dispõe de oito leitos. A realização do procedimento depende da liberação de vagas na unidade. Os critérios para encaminhamento, conforme a pasta, levam em conta a gravidade de cada caso, de acordo com prioridades médicas.
A Secretaria de Saúde possui contrato para leitos de UTI com o Hospital São Mateus, Domed e ICDF, e o custo anual é de R$ 17.054.289,20, R$ 28.064.824,45 e R$ 31.987.505, respectivamente.
Por meio de nota, o ICDF afirmou que atualmente dispõe de 10 leitos de UTI cardiopediátrica, sendo oito destinados integralmente para os pacientes do SUS. O instituto realiza, em média, 18 cirurgias cardiopediátricas por mês, um volume considerado grande pela quantidade de leitos e complexidade dos procedimentos.
Dos atendimentos do ICDF 80% são destinados à rede pública de saúde, através do encaminhamento pela SES/DF, restando 20% para o atendimento de convênios e particulares.
“O GDF, através da SES/DF, está trabalhando em conjunto com o ICDF não só para ampliar o quantitativo de vagas, mas para implantar a linha de cuidado da cardiopatia congênita. O principal objetivo da linha de cuidado é o melhor acolhimento das mães desde o diagnóstico fetal, com acompanhamento da enfermagem, serviço social e psicologia durante toda a gestação, orientando as mesmas até o nascimento dos seus filhos. Desta forma, as mães saberão ao nascimento qual o momento ideal, do ponto de vista clínico, para a cirurgia do filho. Algumas crianças tem que ser operadas imediatamente após o nascimento, mas para muitas o melhor momento será nos meses subsequentes. Com o programa, também, poderemos acompanhar e tratar melhor as crianças que já nasceram antes da implantação da linha de cuidado da cardiopatia congênita”, disse a entidade.
A reportagem também entrou em contato com as outras famílias que perderam os filhos no mês de outubro enquanto aguardavam um leito. Abaladas, elas não quiseram falar.
Fonte: Metrópoles