A Previdência é mesmo deficitária?



Associação de auditores fiscais aponta superávit, contrariando argumento usado pelo governo para reforma previdenciária. Cálculo dos críticos usa dados de 2015 e é questionado por economistas.

O governo do presidente Michel Temer defende uma ampla reforma para mudar as regras da Previdência. A justificativa é que o suposto rombo precisa ser fechado, sob o risco de que o sistema todo entre em colapso. Nos últimos meses, no entanto, vídeos e textos publicados sobretudo em sites de esquerda contestaram essa versão. Para esses críticos, o alardeado rombo da Previdência não passa de uma farsa contábil que visa promover a retirada de direitos dos trabalhadores.

Uma das principais organizações que promovem a ideia é a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip). Em dezembro, ela lançou um vídeo didático em que afirma demonstrar como o governo manipula os números. A tese também foi levantada por alguns economistas que compareceram em audiências no Congresso.

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No ano passado, segundo dados do Ministério da Fazenda, a Previdência registrou um déficit de R$ 149,73 bilhões, equivalente a 2,4% do PIB.

Os argumentos que refutam a ideia de déficit não chegam a afirmar que a Previdência em si não é deficitária, mas apontam que ela não deve ser olhada de forma isolada, somente com base no que é arrecadado e gasto. Cinco pontos são usados para demonstrar a ausência de déficit:

Seguridade Social
Os críticos defendem que o orçamento da Previdência tem que ser analisado levando em conta toda a Seguridade Social, o sistema que engloba os recursos da área da saúde, de assistência social, além das aposentadorias e pensões. Segundo a Constituição, a Previdência é um dos braços da Seguridade. Isoladamente, os recursos da Previdência são levantados por meio da contribuição de trabalhadores e empresas.

Quando considerada toda a Seguridade, as despesas são muito maiores que as da Previdência, já que englobam gastos com o SUS e o Bolsa Família, por exemplo. Só que a fonte dos recursos também é mais ampla, incluindo CSLL (Contribuição Sobre Lucro Líquido), Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e PIS/Pasep. O buraco do regime geral da Previdência poderia, portanto, ser tapado com os recursos de outras contribuições da Seguridade, argumenta a Anfip.

No entanto, para Gil Castello Branco, secretário-geral da ONG Contas Abertas, a premissa de que outros recursos da Seguridade podem ser alocados para cobrir a Previdência apenas muda o problema de lugar. “É tapar um buraco abrindo outro”, afirmou.

O problema dessa interpretação também é que o governo divulgou que a totalidade da Seguridade Social já é deficitária. Em 2016, as receitas somaram R$ 613,2 bilhões, mas os gastos totalizaram R$ 871,8 bilhões, resultando num rombo de 258,7 bilhões de reais.

Cálculo e ausência de servidores
Para contornar o problema do déficit da Seguridade e ao mesmo tempo demonstrar que ao ser incluída ali a Previdência tem superávit, a Anfip exclui os gastos com aposentadorias do Regime Próprio da Previdência Social (RPPS), que engloba servidores públicos civis e militares.

Segundo Vilson Romero, presidente da Anfip, é correto excluir os servidores do cálculo geral já que o regime deles é diferente e a Constituição não prevê que a aposentadoria deles seja custeada pelas várias fontes de renda da Seguridade. “Não concordamos com a inserção tanto dos civis quanto dos militares. O que o governo faz é uma pedalada”, afirma.

No ano passado, o RPPS dos servidores públicos registrou um déficit de R$ 77,1 bilhões, um aumento de 6,4% em relação a 2015. Apenas o regime dos militares contabilizou um rombo de R$ 34 bilhões.

O economista Mansueto Almeida, secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda, crítica a fórmula da Anfip e afirma que a conta terá que ser paga de alguma forma. “Retira-se da conta o déficit dos servidores públicos sem que se diga quem pagará por isso”, disse.

Renúncias previdenciárias
A Anfip também afirma que parte do déficit isolado da Previdência é causada por uma série de renúncias fiscais – benefícios concedidos a empresas e fundações que permitem que elas deixem de pagar contribuições previdenciárias.

O total de renúncias fez com que o governo deixasse de arrecadar R$ 43,4 bilhões em 2016. Metade foi concedida ao Simples Nacional, regime tributário diferenciado, beneficiando micro e pequenas empresas.

Desvinculação de Receitas da União
Os críticos da tese do déficit também apontam como vilã a Desvinculação de Receitas da União (DRU), mecanismo criado em 1994 que permite ao governo federal mais mobilidade nos gastos com os impostos arrecadados.

Hoje, até 30% dos recursos da Seguridade Social podem ser repassados ao orçamento fiscal, permitindo ao governo alcançar a meta do superávit primário. Segundo os críticos, se o governo não tomasse parte do dinheiro da Seguridade para pagar juros da dívida, haveria mais recursos para transferir para a Previdência.

Os recursos do INSS em si não são afetados pela DRU, apenas as outras contribuições da Seguridade, aquelas que poderiam ser usadas para ajudar a tapar o buraco. Em 2016, a DRU realocou 94 bilhões de reais da Seguridade.

O problema, novamente, é que esse dinheiro só cobriria uma parte dos R$ 258,7 bilhões do prejuízo da Seguridade. Sem a DRU, o déficit seguiria sendo de pelo menos R$ 164 bilhões.

Dívidas
Segundo a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), o total devido à Previdência pelos 500 maiores devedores – entre eles empresas, fundações e governos estaduais e municipais – alcançou R$ 426 bilhões em 2016. Críticos da reforma da Previdência apontam que esse total seria suficiente para tapar três vezes o rombo registrado no ano passado.

O problema é que o pagamento desse valor também só poderia amenizar o rombo da Previdência por pouco mais de dois anos. E mesmo esse cálculo é otimista. Muitas das empresas que devem o montante já faliram há mais de uma década e estão mergulhadas em disputas. A Varig, por exemplo, deve R$ 3,7 bilhões em contribuições.

A própria PGFN não acredita que será possível recuperar uma fatia significativa desse total. No ano passado, só 4 bilhões de reais em dívidas foram recuperados, menos de 1% do total devido.

Conclusão
Mesmo admitindo que a Previdência deve ser vista num quadro maior – no qual há mais recursos, os servidores são excluídos e não há isenções ou DRU –, a conta ainda fecharia no vermelho. Aplicando-se essa fórmula, a Seguridade ainda registraria um prejuízo de pelo menos R$ 44 bilhões em 2016, se levados em conta os números divulgados pelo governo.

Num cenário otimista, se as dívidas previdenciárias pudessem ser todas cobradas, elas poderiam ajudar a cobrir esse rombo pelos próximos anos, mas o déficit teria que permanecer estável. De 2015 para 2016, o rombo da Seguridade aumentou 55%.

No vídeo em que promoveu a ideia de inexistência de déficit, a Anfip aplicou seu cálculo a dados de 2015, e assim demonstrou um superávit de R$ 11 bilhões na Seguridade. Outros economistas que defendem a tese da inexistência do déficit preferem usar uma série histórica que inclui anos em que setores da Previdência registraram isoladamente resultados positivos, o que ajuda a melhorar a média.

Segundo Castello Branco, mesmo que fosse possível mostrar um superávit na Seguridade em 2015 e 2016, isso não eliminaria o fato de que hoje a Previdência em si é deficitária, e a tendência é que os números piorem se o quadro permanecer o mesmo.

“É possível fazer todo o tipo de cálculo para forçar uma conclusão. Mas isso não leva em conta que a população está envelhecendo e que vamos ter menos gente para contribuir. O próprio governo do PT já discutia uma reforma”, afirma.

“Falar em superávit é desinformação. Agora, isso não quer dizer que não é válido discutir alguns aspectos da reforma da Previdência proposta pelo governo e questionar se seus aspectos vão ser positivos”, considera.

Romero, da Anfip, aponta que ainda é preciso confirmar independentemente a validade dos números de 2016 divulgados pelo governo. Ele admite, no entanto, que é possível que os números do ano passado não fechem no azul como no cálculo de 2015, mas que isso não invalida a tese de que as contas precisam de mais transparência.

“O governo tenta empurrar a reforma sem explicar os números. É claro que é preciso fazer ajustes devido à demografia, mas também é preciso entender outros fatores que pressionam a Seguridade. Nem tudo é pagamento de aposentadoria. As renúncias e a DRU têm que acabar, por exemplo”, conclui. (Fonte: DW – Deutsche Welle)

Fonte: DIAP



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