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21 nov 2024 22:43


Até que a SUA morte nos separe!

Por juíza Gislaine Carneiro Campos Reis

Mais uma audiência do dia e a vizinha é chamada para ser ouvida como testemunha em um caso de agressão física e ameaça envolvendo um casal que há muito conhece. A moça chega arredia e marcha até a cadeira, senta-se muito séria e de pronto dispara: eu não quero falar!

Eu a olhei com atenção, abri um sorriso acolhedor e respondi: boa tarde! E a reação foi imediata: eu não quero falar! E em alto tom de voz, disse: eu acho um absurdo ter que sair mais cedo do trabalho para prestar depoimento sendo que minha vizinha já voltou pro marido. Eles se merecem!

Foi necessário interromper a audiência para explicar longamente à testemunha sobre o que significa o ciclo de violência, a dependência afetiva e econômica, o que leva as mulheres a reatarem relacionamentos abusivos, o que leva os homens a permanecerem no papel machista e também a importância do seu depoimento para que mais um caso não ficasse impune, mesmo que o casal tivesse reatado.

A moça entendeu, pediu desculpas e falou tudo que sabia, saiu leve e com sentimento de ter feito a parte dela.

E a pergunta é essa: estamos como sociedade fazendo realmente o nosso dever de casa? Os casos de feminicídio aumentam de forma espantosa, a violência doméstica tem mais registros policiais que muitos outros crimes e ainda assim há clara subnotificação. E a cada ocorrência, a cada morte, mais e mais relatos de vizinhos que ouviram anos e anos de brigas que culminaram em agressões, deram bom dia a mulheres com hematomas no corpo, olhos arroxeados, braços quebrados, ouviram gritos de socorro, amigos que ouviram relatos de namoros abusivos, perseguições, ameaças e nada fizeram. E por que nada fizeram? Por que nenhum acionamento da polícia no 190? Por que nenhuma chamada no Disque 180 que pode ser até anônima? Por que nenhum registro no conselho tutelar diante do choro das crianças? Por que não conversar com essa vítima?

E a resposta é simples e ao mesmo tempo desafiadora. Porque vivemos todos, homens e também mulheres em uma sociedade machista. Desde cedo somos moldados e nossas ações individuais permeiam e refletem o que o corpo social ainda carrega como valores por séculos e séculos e a desvalorização da mulher e o seu não reconhecimento como sujeito de direitos em igualdade de condições ainda encontra guarida na sociedade que teima em banalizar a violência dentro de casa. A sociedade continua cega e se anestesia em relação ao que se passa entre “quatro paredes”. A violência conformada dentro do lar ainda é vista como um problema privado, um problema a ser resolvido somente entre a vítima e o agressor. Ela, sozinha, deve ter forças para mudar o rumo de sua vida como se fosse fácil. E é ela quem está sob julgamento.

Quantas mães acompanham as próprias filhas jovens nas audiências e acabam depondo a favor do genro agressor argumentando que a filha não está cuidando dele como merece e que ele é ótimo porque coloca dinheiro em casa! O olhar dessa mãe carrega o olhar que a sociedade ao longo da história construiu sobre os papeis das mulheres e dos homens. Essa mãe cresceu alimentando-se desses valores, os reproduziu no próprio casamento e sua filha carrega esse modelo de “bem viver”. Bem viver para quem? E se o ciclo não é interrompido, os netos têm enorme risco de perpetuar a violência em suas relações.

Quantas mulheres se sentam na sala de audiência, ou nos grupos de reflexão e tentam convencer a si e aos outros que provocou a fratura no próprio braço ou a ameaça com uma faca porque não fez no almoço o prato que o marido gosta?

São milhares de casos, inúmeras e tristes histórias que se repetem até mesmo na nova geração de meninas e meninos que têm amplo acesso à informação. Mas e o peso da informação social de que dentro de casa há consentimento tácito para a violência contra a mulher?

Precisamos enquanto componentes dessa sociedade adoecida em seus valores fazer a diferença, nos cobrar atitude ativa em todos os momentos. Chega de rir de piadas machistas absurdas que só mantêm valores que precisam mudar e que só um dos lados consegue realmente rir; chega de dizer que se alguém é agredido é porque gosta, pois esse discurso não cabe mais dentro da noção constitucional do princípio da dignidade humana.

Basta de fingir não ouvir gritos, não ver hematomas, basta de normalizar atitudes abusivas, banalizar e vestir a roupagem de paixão para sentimentos como ciúmes, posse, controle. Chega de dizer para a amiga que ela está sozinha apenas porque é exigente!

Precisamos todos ser exigentes. Exigir respeito, igualdade, uma vida individual sem violência e uma sociedade mais pacífica.

Aquela moça da audiência entendeu a importância que teve no processo de responsabilização que não serviu só para o caso concreto, mas também como resposta geral e com caráter de prevenção.

Vamos todos atuar nas mudanças necessárias para que o nosso QUERER e não a NOSSA morte nos separe!

Gislaine Carneiro Campos Reis é juíza Coordenadora do Núcleo Judicial da Mulher do TJDFT e titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar de Santa Maria. 

Fonte: TJDFT

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