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Era um dia normal de trabalho para Marise do Rocio Coelho Martins Buhr, com pouco mais de 60 anos de idade na época — junho de 2023. Como auxiliar de produção em uma empresa de cosméticos, ela embalava sabonetes quando sentiu uma leve tontura acompanhada de dor do lado direito da cabeça. Nada muito intenso.
Mesmo com sintomas leves, Marise percebeu a preocupação das colegas, que notaram algo errado e perguntaram como estava se sentindo. Um pouco confusa, disse que acreditava que sua pressão estivesse alta. Ao verificarem que realmente estava fora do normal, as colegas a levaram até uma Unidade de Pronto Atendimento (UPA).
Com a chegada à UPA, rapidamente perceberam que Marise estava sofrendo um acidente vascular cerebral (AVC). “Minha boca estava torta e, quando meu documento caiu no chão, tentei pegá-lo e não consegui, estava sem forças no braço direito.” Ao informar os médicos sobre os sintomas, novos testes foram realizados. “A médica pediu que eu levantasse os braços, sorrisse e falasse. Percebi que minha língua estava enrolada.”
A partir daquele momento, começou uma corrida contra o tempo. Ainda na UPA, os funcionários buscaram vagas em hospitais e acionaram o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), que levou Marise ao Complexo do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná (CHC-UFPR).
No hospital, pacientes com suspeita de AVC recebem atendimento prioritário que inicia com a entrada por um local diferente, dando acesso diretamente ao setor de neurologia. O primeiro exame realizado é uma tomografia, para auxiliar a equipe médica a identificar se o AVC é isquêmico ou hemorrágico e, assim, definir o melhor tratamento.
“Em casos de AVC, cada minuto conta, pois, a cada instante, neurônios morrem por falta de oxigênio. Por isso, agir rapidamente é fundamental para salvar vidas e reduzir sequelas”, alerta a neurorradiologista intervencionista do CHC, Luana Maranha Gatto.
Marise teve a sorte de ser encaminhada para o único hospital do Paraná que realiza a trombectomia mecânica (TM) pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Na época, o procedimento ainda fazia parte de um ensaio clínico financiado pelo Ministério da Saúde, que avaliava sua viabilidade em comparação com o tratamento clínico padrão no contexto do SUS.
A TM é uma cirurgia minimamente invasiva que remove coágulos das artérias cerebrais, restabelecendo o fluxo sanguíneo. Para isso, os médicos inserem um pequeno tubo flexível, chamado cateter, em um vaso sanguíneo — geralmente na virilha ou no braço — e o guiam até o local da obstrução, no cérebro. Lá um dispositivo remove o coágulo que está bloqueando a passagem do sangue. O procedimento é indicado, principalmente, para casos de obstrução em grandes artérias.
Uma grande vantagem desse procedimento é que ele pode ser realizado em uma janela maior de tempo após o início do AVC isquêmico. Isso o diferencia da trombólise endovenosa, tratamento com medicamentos que precisa ser administrado em até quatro horas e meia depois dos primeiros sintomas para ser eficaz.
Apesar de já ser comum em hospitais privados, na rede pública o tratamento medicamentoso era o único disponível até novembro de 2023, quando o Ministério da Saúde incluiu a cirurgia na lista de procedimentos ofertados pelo SUS.
Antes disso, 12 hospitais públicos estavam autorizados a realizar a intervenção no contexto do estudo Resilient – um ensaio clínico que constatou a melhor eficácia da trombectomia mecânica, para tratar AVC isquêmico, em conjunto com o tratamento padrão, do que o tratamento padrão sozinho.
Apesar de a trombólise endovenosa ser utilizada há cerca de 30 anos nos casos em que o paciente se encontra nessa janela de quatro horas e meia após o início dos sintomas, há algumas contraindicações, conforme explica a neurologista do CHC-UFPR Valéria Scavasine.
“O tratamento não é indicado para pacientes que passaram por uma cirurgia extensa recentemente e têm risco de sangramento, para aqueles que sofreram traumatismo craniano ou infarto há pouco tempo, ou para pessoas que tomam medicamentos para afinar o sangue. E é justamente para cobrir essas limitações que a trombectomia mecânica se torna fundamental”, explica a médica.
Gatto acrescenta que quanto mais cedo a trombectomia mecânica for realizada, melhores serão os resultados.
“O limite para realização do procedimento é de 24 horas após o início dos sintomas, havendo uma consideração técnica importante: ele só pode ser feito em vasos sanguíneos de grande calibre, pois o cateter não alcança os vasos menores”.
Sem acesso à trombectomia mecânica, pacientes que não conseguem atendimento dentro da janela de quatro horas e meia acabam ficando sem tratamento. “Nesses casos nos restava apenas adotar medidas para evitar um novo AVC, administrando medicações preventivas”, complementa Scavasine.
Atualmente, a cada nove pacientes tratados com trombólise endovenosa, apenas um consegue recuperar completamente sua independência. Mesmo assim, esse é um resultado positivo, considerando que a terapia medicamentosa é a mais acessível no país. Já a trombectomia mecânica, se realizada dentro das primeiras seis horas, aumenta consideravelmente essa taxa de recuperação: um em cada quatro pacientes tratados fica totalmente independente.
“Sem contar os casos de recuperação parcial”, destaca Gatto. “Muitos pacientes que poderiam ficar acamados conseguem reduzir significativamente suas sequelas, mantendo qualidade de vida. Por isso, negar a trombectomia mecânica a quem tem indicação para o procedimento é quase tão absurdo quanto deixar de prescrever antibiótico a um paciente com choque séptico.”
Reabilitação nem sempre é necessária, mas o tempo é crucial
Como o AVC é uma doença altamente desafiadora e o tempo interfere diretamente nos danos aos neurônios, mesmo quando o procedimento é bem-sucedido, pode haver algum grau de comprometimento cerebral, causando déficits temporários ou permanentes que exigem reabilitação.
“Além de o tempo ser crucial, dependemos da eficácia na reabertura do vaso obstruído. Algumas dificuldades técnicas podem interferir nesse processo, mas nosso objetivo é sempre evitar a necessidade de reabilitação”, explica a neurorradiologista intervencionista.
Se o paciente chegar rapidamente ao hospital e a equipe responsável pela trombectomia atuar com eficiência, conseguindo desobstruir o vaso, ele pode sair do procedimento sem nenhuma paralisia e receber alta poucos dias depois, já caminhando.
“A cirurgia é minimamente invasiva, sem cortes ou abertura no crânio. Como é realizada por meio de uma punção na artéria femoral ou radial, um repouso de 24 horas é suficiente para a recuperação”, diz Gatto.
Foi o que aconteceu com Marise. Logo após o tratamento, ainda no hospital, ela já conseguia realizar suas atividades de forma independente. “Eu sabia que tinha sofrido um AVC, mas não fazia ideia da gravidade, pois me sentia muito bem”, lembra.
Meses depois do incidente, Marise foi demitida do antigo emprego, mas logo conseguiu uma nova colocação como atendente escolar. “Estou aliviada por não depender de ninguém. Meu atendimento foi muito rápido e eficiente, e acredito que isso foi essencial para minha recuperação”, afirma.
Diagnóstico rápido e atendimento adequado fazem a diferença
Segundo as médicas do CHC, o grande desafio no tratamento do AVC é garantir que a população reconheça os sinais da doença e leve o paciente ao hospital correto a tempo.
“Com os avanços tecnológicos da medicina, é fundamental que os pacientes cheguem ao hospital nas chamadas ‘horas de ouro’. Assim conseguimos oferecer o tratamento adequado e evitar sequelas neurológicas”, destaca Gatto.
Para identificar o AVC, Scavasine enfatiza que se deve estar atento a qualquer alteração repentina no estado do paciente.
“Um dos principais sinais é a assimetria facial. Se ao pedir para a pessoa sorrir, um lado do rosto não responder adequadamente, pode ser um indicativo importante.”
Outro teste útil é pedir que a pessoa levante os dois braços. Se um deles apresentar fraqueza ou cair, isso pode ser um sinal de alerta. Além disso, perda de sensibilidade em um lado do corpo, dificuldade para falar ou entender, problemas de coordenação, dificuldade para caminhar e dor de cabeça intensa também podem indicar um AVC.
As especialistas recomendam que, ao notar esses sinais, qualquer pessoa presente deve acionar imediatamente o Samu pelo telefone 192. A preferência deve ser chamar o serviço de emergência, que encaminha o paciente para um hospital equipado, garantindo que ele receba o tratamento adequado o mais rápido possível. As UPAs não possuem a aparelhagem necessária para o atendimento.
Gatto ainda ressalta a necessidade de mais hospitais equipados com Radiologia Intervencionista — especialidade médica que utiliza técnicas endovasculares minimamente invasivas para diagnosticar e tratar doenças cardiológicas, neurológicas e vasculares, através de cateterismo — além da ampliação de equipes de neurorradiologistas intervencionistas e de uma rede hospitalar mais integrada.
Cada tipo de AVC exige um tratamento
Existem dois tipos de AVC: o isquêmico e o hemorrágico. O primeiro ocorre quando uma artéria cerebral é obstruída, impedindo a passagem de fluxo sanguíneo para as células em determinado território cerebral, fazendo com que os neurônios acabem morrendo por falta de oxigênio. Já o segundo acontece quando um ou mais vasos sanguíneos do cérebro se rompem, provocando uma hemorragia.
Para identificar corretamente o tipo de AVC, é necessário realizar uma tomografia. Com o diagnóstico definido, o tratamento pode ser iniciado. No caso do AVC isquêmico, as opções incluem trombólise endovenosa e trombectomia mecânica, dependendo do tempo transcorrido desde o início dos sintomas.
Já para o AVC hemorrágico, as opções de tratamento são mais limitadas. Como, na maioria dos casos, ele é causado por hipertensão arterial, é fundamental controlar rigorosamente a pressão na fase aguda para evitar o agravamento da hemorragia. Em algumas situações, pode haver indicação de drenagem cirúrgica.
“Por isso, a agilidade nos momentos iniciais é essencial, até porque não há nenhuma intervenção que os médicos do Samu possam realizar antes da tomografia, pois os tratamentos para os dois tipos de AVC são muito diferentes”, alerta Scavasine.
De modo geral, o AVC hemorrágico tende a ser mais grave que o isquêmico. Felizmente, sua ocorrência é menor: ele representa apenas 15% dos casos, enquanto o isquêmico corresponde a 85%.
“Temos tratamentos eficazes para a maioria dos casos. Por isso, é essencial educar a população sobre a prevenção dessa doença, que é a principal causa de morte no Brasil. Estima-se que 90% dos AVCs sejam consequência de hábitos de vida pouco saudáveis. Assim, as orientações básicas de cuidado com a saúde são fundamentais”, reforça Gatto.
Manter uma alimentação equilibrada, praticar atividade física regularmente, controlar a pressão arterial, o diabetes e o colesterol, evitar o tabagismo e o consumo excessivo de álcool, além de realizar check-ups periódicos, continuam sendo as melhores formas de prevenção ao AVC.