Sem interesse pela rede públicaDos mais de 1,2 mil médicos nomeados no último concurso da Secretaria de Saúde, 311 não tomaram posse. Recém-formados preferem salários altos de hospitais privados e fazem questão de trabalhar perto de casa. Pediatria e anestesiologia têm o maior deficit
Por Otávio Augusto
Nem mesmo o salário inicial de R$ 13,2 mil para 40 horas semanais de trabalho tem atraído médicos para a Secretaria de Saúde. Os graves problemas estruturais dos hospitais do governo, como a falta de insumos e medicamentos e o sucateamento dos equipamentos das unidades, afastam os novos profissionais. Em 2014, dos 488 médicos aprovados e convocados, 285 se recusaram a assumir a vaga. No ano passado, o número de desistências foi maior: das 1.242 nomeações, 311 pessoas não tomaram posse. Isso significa que 25% dos aprovados no último concurso abriram mão do serviço público.
Atualmente, a pasta conta com 32.915 profissionais. Há um deficit de de cerca de 1 mil médicos e as especialidades com maior defasagem de pessoal são pediatria e anestesiologia. Este ano, o Executivo local convocou 1.455 médicos. Do total, 875 vão substituir contratos temporários. Em 29 de dezembro, houve a nomeação de 63 pediatras. Mas apenas 11 assumiram. A taxa de ausências no trabalho ficou em 12% no ano passado. A Secretaria de Saúde não tem detalhes sobre a quantidade de atestados, faltas injustificadas e abonos concedidos aos servidores.
O Correio ouviu médicos e especialistas para explicar a resistência dos profissionais médicos em atuar na rede pública. A conclusão é que o sistema de saúde coloca em confronto os anseios de dois grupos distintos: o dos servidores com mais tempo de serviço, que desejam o fortalecimento das políticas para o setor, e dos jovens recém-formados, que esperam boa remuneração aliada a condições satisfatórias de trabalho. Contudo, as gerações tão distantes, separadas muitas vezes por mais de três décadas, concordam em um único ponto: os recursos humanos do funcionalismo público têm que ser reformulados. “O médico jovem precisa ter a oportunidade de fazer a educação continuada”, avalia o cirurgião oncológico Florentino Araújo Cardoso Filho, presidente da Associação Médica do Brasil.
Penúria
A cirurgiã pediatra Olga Oliveira, 64 anos, formou-se em 1978, na Universidade de Brasília (UNB). Ela fez três anos de residência no Hospital de Base e, em 1981, assumiu um cargo público na Secretaria de Saúde. Para a veterana, hoje lotada no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), o olhar humano dos médicos ficou perdido com o passar do tempo. “A preocupação do médico atual é com o não cumprimento do horário, todos burlam as escalas. Optam pelas especialidades que dão dinheiro e só querem trabalhar nos hospitais próximos de casa”, ressalta.
A escassez da estrutura do serviço público de saúde também é pretexto para a fuga. Hoje, 62 medicamentos estão em falta. No Hospital de Base, o aparelho de ressonância magnética tem 16 anos de funcionamento e o de radioterapia é o mesmo há 10 anos. Grande parte dos prédios é das décadas de 1970 e 1980 e não passaram por grandes reformas. “Na escola, existe essa doutrinação ilusória de que o melhor lugar para trabalhar é onde se gasta menos tempo para chegar e onde não existem dificuldades de trabalho”, pontua Olga Oliveira.
Segundo ela, os novos profissionais preferem trabalhar perto de casa e optam por especialidades que geram maior lucro. Para ela, isso causa um desmonte do serviço público. “Os médicos recém-formados querem gastar pouco tempo no deslocamento para ter a oportunidade de trabalhar em outros hospitais. O Base e o Hran são os que mais chamam a atenção dos servidores que vão entrar na rede”, queixa-se Olga.
Com a regionalização da Secretaria de Saúde e a subdivisão em sete superintendências administrativas, os próximos concursos para a pasta devem ser específicos para cada região. Dessa forma, os candidatos prestarão a prova para locais determinados. Por exemplo, um médico que se inscreva para a região centro-sul só poderá trabalhar em unidades médicas das nove cidades dessa área, como Asa Sul e Guará.
Pessimismo
Passava das 16h quando o médico Francisco Leal Silva recebeu a reportagem na Unidade Mista de Saúde (Policlínica) de Taguatinga Sul — um prédio de 1973, que nunca passou por reformas. Em seu consultório, o mofo e as goteiras chamavam a atenção. Formado em clínica médica pela Universidade Federal do Ceará, ele conta que, ao tomar posse, em 1995, começou a trabalhar no Hospital Regional de Taguatinga. “No meu terceiro plantão, morreram sete pessoas na emergência por não termos como atender. Naquele dia, percebi que os médicos e enfermeiros ficam isolados. Pensei em desistir”, lembra. “O sistema público de saúde está sendo desmontado. A estabilidade e os salários já não seguram o profissional. Tem que existir algum estímulo. O jovem quer ser treinado e isso não acontece”, critica o veterano.
O universitário Odil Garrido Campos de Andrade, 21 anos, está no 6º semestre de medicina e ressalta a necessidade da educação continuada. O rapaz quer se especializar em oncologia. “O governo não dá garantias para o exercício adequado da profissão. A rede pública é um bom lugar para exercer a medicina? Com toda a certeza, não. O que nos estimula é poder ajudar os pacientes, que são muito necessitados.”
O secretário de Saúde, Fábio Gondim, reconhece a resistência dos médicos em assumir cargos na rede pública. Ela avalia que os salários são altos e acredita que, com melhorias estruturais no sistema de saúde, o interesse dos profissionais vai aumentar. “As últimas nomeações resultaram na posse de poucos profissionais e isso dificulta o trabalho da secretaria. Preciso das pessoas trabalhando. Temos amarras para chamar concursados e não podemos contratar temporários”, avalia o secretário de Saúde, Fábio Gondim. Um novo concurso específico para pediatras e anestesistas deve ser realizado em breve.
Para saber mais
Aumento salarial
A recomposição do salário dos médicos começou em 2011, na gestão de Agnelo Queiroz (PT). Em média, o salário-base subiu 66% desde então. O Executivo local pagou os acréscimos gradualmente até o ano passado. Em 2011, o piso salarial para médicos que trabalhavam 20 horas por semana era de R$ 3,9 mil. A partir de setembro de 2013, subiu para R$ 5,4 mil e chegou a R$ 6,6 mil, em 2015. No próximo ano, alcançará o valor de R$ 8,1 mil. Médicos que trabalham 40 horas ganhavam o piso de R$ 8,8 mil e passaram a receber R$10,8 mil em setembro de 2013. Em 2015, o salário-base chegou a R$ 13,2 mil e o teto chegará a R$ 16,2 mil.
Três perguntas para
Florentino Araújo Cardoso Filho, presidente da Associação Médica do Brasil (AMB)
O que faz o médico optar pela rede pública ou privada?
Para o médico, a remuneração não é o primeiro nem o principal atrativo. O ambiente de trabalho oferece condições para o exercício da medicina? Isso sim é importante. Na rede pública de Brasília, falta tudo, o médico não consegue nem iniciar o tratamento do paciente. Isso é desgastante, gera desmotivação, angústia e revolta.
Os jovens estão cada vez mais distantes da rede pública. Por quê?
O médico jovem precisa ter a oportunidade de fazer a educação continuada. Ele quer e precisa se aperfeiçoar. Para atrair o profissional recém-formado para o serviço público, é preciso ter qualidade de infraestrutura. Hoje, temos médicos querendo deixar os hospitais públicos e falta de interesse em tomar posse.
A preferência é por local de trabalho perto de casa e salários altos?
Trabalhar longe de casa é um dificultador, mas o médico não tem preocupação com isso. A luta dos médicos é que o sistema púbico funcione bem. Porém, o que tem acontecido é um desmonte da saúde. Os governos estão investindo menos no setor. Na atenção básica, por exemplo, não se tem um plano de carreira para o médico que atua na atenção básica.
Fonte: Correio Braziliense