Doentes e familiares sofrem com a precariedade da rede pública de saúde no DF



De reagentes básicos a medicamentos para tratamento contra o câncer, falta de tudo nas unidades do Distrito Federal. Aos pacientes, resta aguardar ou apelar à Justiça. Mas nem todos sobrevivem à espera

Por: João Gabriel Amador e Ary Filgueira

Ismael, Erinaldo e Romilson. Três moradores do Distrito Federal com histórias diferentes, mas interligadas às de milhares de outros brasileiros que, diariamente, vivem a angústia da espera por atendimento na rede pública de saúde. Os relatos variam da negligência de médicos, enfermeiros e atendentes à falta de remédios e de equipamentos. A prescrição, em todos os casos, é de um recurso que nenhum desses pacientes dispõem: tempo.

O aposentado Ismael Afonso, 69 anos, por exemplo, luta contra um câncer na região abdominal. Em setembro, ele passou por uma cirurgia no Hospital de Base (HBDF), onde teve parte do intestino grosso retirada. O procedimento foi um sucesso, mas o passo seguinte, a quimioterapia, que deveria ter sido iniciada na semana passada, esbarrou na burocracia estatal.

Ismália Afonso, 36 anos, filha de Erinaldo, relata que o Governo do Distrito Federal não comprou um dos medicamentos necessários para o tratamento: a Oxaliplatina. “É um problema administrativo”, ressalta Ismália.

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A família de Ismael enfrenta um dilema: não sabe se acredita na promessa da Secretaria de Saúde de repor o estoque do remédio em breve ou se inicia a quimioterapia na rede particular. O medo é não conseguir arcar com o oneroso tratamento.

Meu pai precisa fazer pelo menos seis ciclos da medicação, um a cada 21 dias, mas uma dose custa mais de R$ 10 mil. Só poderíamos pagar a primeira, e não é recomendável interromper o tratamento

Ismália Afonso

Busca por diagnóstico
O caso de Ismael se assemelha ao de Erinaldo Carvalho, 46 anos. Este ano, a vida do fotógrafo deu uma guinada. Em agosto, ele sentiu paralisia nas pernas e buscou atendimento no Hospital Regional de Ceilândia, onde o caso foi minimizado. Após quatro horas de espera, os atendentes apenas aferiram a quantidade de glicose que ele apresentava no sangue e o liberaram.

Erinaldo Carvalho/Arquivo pessoal
Erinaldo pagou os exames e descobriu o tumorErinaldo Carvalho/Arquivo pessoal

Incomodado com o descaso, Erinaldo procurou um hospital particular, onde se submeteu a uma tomografia computadorizada que apontou a existência de um edema no cérebro. O fotógrafo procurou, então, o HBDF, e foram recomendados novos exames. Ele não quis entrar na lista de espera pelo procedimento, que chega a vários meses na rede pública, e desembolsou R$ 780 para os testes, feitos na rede privada. O diagnóstico que chegou ainda em agosto foi devastador: câncer no cérebro, com glioma alto grau, do tipo maligno.

Desde então, Erinaldo se afastou da empresa que tem com a mulher, Elizineide. Foi forçado a trocar os flashes e os cliques fotográficos pelas luzes brancas hospitalares e os sons de equipamentos médicos. Em setembro, ele enfrentou a primeira cirurgia, no próprio Hospital de Base, para a retirada do tumor.

Em geral, os procedimentos cirúrgicos são feitos com certa celeridade. O maior problema dos pacientes é marcar os exames prévios e o tratamento posterior à intervenção. Tanto que, passados dois meses, o fotógrafo ainda aguarda a consulta na área de oncologia e radioterapia na HBDF para iniciar o tratamento, mas a previsão de atendimento é para daqui a cinco ou seis meses. Elizineide foi informada que há 600 pacientes na frente do marido.

Via judicial
Cansada de esperar e com o receio de o marido morrer enquanto espera ser atendido, Elizineide entrou na Justiça para obrigar o Estado a custear o tratamento. Porém, mesmo com uma decisão favorável, a família diz que a rede pública não cumpre a determinação judicial.

A saída encontrada por Erinaldo e a esposa foi iniciar uma campanha nas redes sociais para mobilizar amigos, colegas e a comunidade, pois a doença tem avançado e o orçamento para todo o tratamento é de R$ 21 mil, recursos que a família não tem.

73 dias de espera
Se pacientes recém-operados de tumores não conseguem atendimento para evitar a reincidência da doença, o que ocorre com quem enfrenta problemas que não ameaçam a própria vida? O caso do instalador de películas automotivas Romilson Duarte Melgaço, 36 anos, ilustra a situação.

Em 12 de setembro, ele passava de moto pela Avenida dos Bombeiros — que divide os setores Industrial e Norte do Gama, quando um carro invadiu a faixa por onde trafegava, fazendo com que a vítima batesse na traseira de outro veículo. Com a pancada, Romilson foi arremessado a uma distância de quase dez metros. É tudo o que ele recorda da colisão. “Desmaiei e só acordei no hospital”, conta.

Romilson foi internado no mesmo dia do acidente e passou outros 54 no Hospital Regional do Gama. Em 4 de novembro, ele recebeu alta, embora não estivesse recuperado. Desde então, convive com dores e incômodos resultantes do descaso do sistema de saúde.

Nesta segunda-feira (23/11), Romilson contabiliza 73 dias de espera por uma osteossíntese — nome dado à operação para implantar uma prótese com parafusos e placa de material especial no braço para calcificar o osso rompido na queda da motocicleta. A cada dia que passa, as chances de uma calcificação correta diminuem. “O médico disse que meu braço pode ficar torto se os ossos colarem”, preocupa-se.

Romilson Duarte/Arquivo pessoal
Romilson está sem trabalhar desde o acidenteRomilson Duarte/Arquivo pessoal

A renda mensal de Romilson, R$ 1,2 mil, não é suficiente para cobrir o custo da cirurgia: R$ 22 mil. Dessa forma, o instalador apelou à Justiça. Na sexta-feira passada (13/11), o Juizado Especial da Fazenda Pública do DF determinou que a Secretaria de Saúde comprasse os materiais, sob pena de multa de R$ 1 mil por dia descumprimento. A pasta, no entanto, não havia acatado a decisão até a publicação desta reportagem.

Sem poder trabalhar, Romilson sobrevive, hoje, graças à ajuda dos parentes, pois não tem mais rendimentos desde que parou de trabalhar. “Se não fossem meus pais e meus irmãos, eu estaria passando fome.”

Por meio de nota, a Secretaria de Saúde informou ao Metrópoles que Romilson “ainda não foi operado por falta da prótese necessária para o tipo de cirurgia dele”. A pasta informou ainda que “todos os procedimentos para a compra da prótese do paciente — que foi judicializada — já foram tomados e, assim que o material chegar na secretaria, a cirurgia será realizada”.

Descaso e morte
Embora as três histórias relatadas até aqui ilustrem os recorrentes problemas no sistema de saúde do país, esses pacientes ainda têm esperança de contornar os contratempos. A aposentada Maria Pereira dos Santos não teve a mesma sorte.

A senhora de 66 anos foi internada no Hospital de Base em 1º de setembro, com febre e dores nas costas. Depois de uma tomografia, os médicos identificaram um tumor próximo aos brônquios.

Uma biópsia foi indicada para que os médicos pudessem avaliar a gravidade do câncer. O procedimento só foi feito em 28 de setembro. Mas o material coletado, que deveria ficar resfriado, não pôde ser usado devido a um descuido da equipe médica, que o deixou fora do local adequado, segundo relatos de familiares.

A filha Raimunda Pereira dos Santos, 44 anos, só conseguiu marcar um novo exame para 11 de novembro, mas a espera pelo resultado foi interrompida bruscamente. Maria morreu na madrugada do último domingo, dia 22, e a família ficou sem saber se algum tratamento poderia ter evitado a fatalidade. “O que mais me angustiou foi não ter como confortar minha mãe”, lamenta Raimunda, que trabalha como babá.

Resposta oficial
Ao ser questionada sobre os casos de Maria, Erinaldo e Ismael, a Secretaria de Saúde enviou nota única, sem explicar a demora no atendimento que, no caso da aposentada, foi fatal. Confira a resposta da pasta:

“A Secretaria de Saúde informa que todo atendimento nas unidades de saúde pública do DF é de acordo com a classificação de risco que tem como objetivo priorizar os casos considerados mais graves. Informamos ainda que todos os pacientes passam por uma triagem para avaliação de sua necessidade clínica e são direcionados para o atendimento conforme a urgência, que é classificada por cores: vermelha (emergência); laranja (muito urgente); amarela (urgente); verde (pouco urgente) e azul (não urgente). Já para procedimentos regulados, os atendimentos são realizados por meio da inserção dos dados do paciente no sistema de regulação da Secretaria de Saúde, o qual não dispensa a classificação de risco. Sobre a falta de medicamentos e insumos, informamos ainda que a pasta tem se empenhado para normalizar o abastecimento de medicamentos na rede o mais breve possível.”

Fonte: Metrópoles



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