O Conselho Federal de Medicina (CFM) publicou, no Diário Oficial da União (DOU), resolução que veda a realização da assistolia fetal em gestações com mais de 22 semanas para casos de aborto oriundos de estupro. O procedimento provoca a morte do feto por meio da administração de substâncias para, depois, ser retirado do útero da mulher. Para Ana Luiza Machado, especialista em Direito Médico e professora de Medicina do Centro Universitário de Brasília (CEUB), a resolução provocará uma potencial criminalização das vítimas que, ao invés de receberem amparo, não terão direito ao aborto legal.
“A resolução do CFM não vai impedir o aborto legal em caso de vítimas de estupro, mas vai dificultar o atendimento, aumentar a discussão, radicalizar opiniões, aumentar a judicialização e continuar a ignorar os direitos reprodutivos das mulheres”, pontua a professora do CEUB. No Brasil, a interrupção da gravidez é legal em três casos: quando há risco de vida para a mulher, quando a gestação resulta de um estupro ou quando o feto se desenvolve com anencefalia (condição caracterizada pela ausência parcial ou total do encéfalo.
Não existe um tempo máximo para fazer o aborto legal. Em 2012, o Ministério da Saúde publicou recomendação técnica do procedimento ser feito entre a 20ª e a 22ª semana de gestação ou quando o feto tem até 500g. No entanto, a orientação não é prevista em lei. As vítimas de estupro com gestação indesejada têm a garantia legal de realizar o aborto legal em hospitais da rede pública, sem necessidade de autorização judicial e em qualquer período gestacional.
Omissão de socorro X Processo ético
Para a especialista, haverá também impactos jurídicos para as instituições de saúde, devido à resolução do CFM: “Elas terão que lidar com essa situação, em que existe uma lei que garante o aborto legal em caso de estupro sem limite de tempo gestacional, ao mesmo tempo, os profissionais habilitados para o procedimento estão sujeitos a responderem um processo ético-profissional no seu Conselho Regional de Medicina se realizarem o aborto legal nessa situação”.
Além disso, um médico que não atenda uma vítima de estupro em busca de um aborto legal, não pode ser processado por omissão de socorro. “Ele somente poderá ser processado por omissão se for um caso de urgência/emergência e se não prestar atendimento”, acrescenta a docente do CEUB. A atitude do profissional se negar a fazer o aborto, alegando objeção de consciência, não será considerada omissão – sendo obrigação da instituição de saúde disponibilizar outro profissional para realizar o procedimento.
Conflito com o Código Civil
O Ministério Público Federal (MPF) já solicitou explicações ao CFM sobre a fundamentação científica para a resolução. O Conselho tem até cinco dias úteis para enviar os esclarecimentos. Entre os argumentos do CFM, está a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que ninguém deve ser tratado de forma degradante, e a Constituição Federal, que prevê o direito inviolável à vida.
Para Ana Luiza Machado, a norma do CFM diverge da legislação brasileira no que se refere aos direitos da pessoa humana. “O Código Civil adotou a teoria natalista, garantindo somente ao nascido vivo o status de ‘pessoa humana’, sujeito com direitos e deveres. Já a Resolução do CFM refere-se ao nascituro, ou seja, ao feto, que não é considerado ‘pessoa humana’. A justificativa do CFM conflita com a legislação e traz mais argumentos ao debate sobre os direitos reprodutivos das mulheres”, explica a professora do CEUB.
A especialista em Direito Médico finaliza defendendo o tratamento que deveria ser oferecido às mulheres que sofrem esse tipo de crime: “O ideal seria que as vítimas de estupro fossem imediatamente acolhidas, orientadas e atendidas no sistema de saúde. Assim, elas seriam preservadas e evitaria as pressões externas de cunho moral e religioso que não conseguem visualizar outra verdade a não ser a sua”.