“Está muito difícil e deprimente trabalhar na rede pública de saúde”, desabafa cirurgião



Falta de estrutura, medicamentos e insumos nas unidades de saúde estão entre os pontos ‘desanimadores’ apontados pelo médico

Por Kleber Karpov

Nessa semana, uma postagem do Cirurgião torácico na Secretaria de Saúde do DF e no Hospital das Forças Armadas, Kleber Nogueira de Campos viralizou nas redes sociais. Em um desabafo o médico narrou a dificuldade de atuar profissionalmente enquanto servidor público do Distrito Federal.

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O caso chamou atenção de profissionais, de usuários da saúde pública do DF, além da própria mídia, às vezes injusta ao imputar aos médicos e demais trabalhadores desse segmento as consequências e o reflexo da falta de gestão por parte do Governo do Distrito Federal.

Confira o desabafo de Kleber Nogueira

Fiz ontem no Hospital de Base do DF, sem dúvida alguma, o ambulatório mais difícil de minha carreira cirúrgica. É como disse ontem aqui mesmo no FB: Está muito difícil e deprimente trabalhar na rede pública de saúde.

O que antes era fonte de enorme prazer, hoje, tornou-se uma cota de sacrifício para mim. É muito duro para um profissional como eu constatar e diagnosticar as aflições humanas, saber que tem conhecimento e competência para intervir, para ajudar as pessoas, para mudar a história natural de suas enfermidades, saber que é pago para ajudar as pessoas e, ainda assim, não ter como ajudá-las por deficiências logísticas do próprio sistema que o contratou. Somos pagos pra fazer e não fazemos porque nosso empregador não permite – tacitamente – que façamos.

Eis a situação surreal na qual encontra-se a maioria dos profissionais que, hoje, labuta na saúde pública brasileira. Somos, em última análise, instados – por normas administrativas e trabalhistas – a sermos cúmplices dum autêntico genocídio. Nós, cúmplices, e o restante da população, inclusive vocês, preclaros leitores, testemunhas. É inacreditável o desmanche que os caras vêm promovendo dolosamente na máquina pública desse país – enquanto o Ministério Público e nossas entidades médicas a tudo assistem, impassivos.

Dou-lhes alguns exemplos ocorridos nos meus dois últimos dias de trabalho no Hospital de Base do DF:

Recebemos quatro pacientes graves – em macas ou cadeiras de rodas – provenientes de hospitais regionais do DF cujas consultas sequer foram agendadas no nosso serviço. O desespero dos colegas da periferia chegou a esse ponto: simplesmente despejam os pacientes em cima da gente (do “hospital de referência’) e “seja o que Deus quiser”.

Quis substituir a bala de oxigênio de um paciente grave, O2-dependente, que veio removido numa maca do Hospital Regional de Sobradinho para consulta conosco, mas não havia bala de oxigênio substituta disponível.

Constatei que uma paciente estava há seis meses, segundo os familiares, sendo tratada apenas com soro fisiológico venoso no Hospital de Brasilinha-GO, enquanto um câncer do esôfago cervical crescia e lhe invadia a traquéia, causando-lhe obstrução ventilatória. E que, mesmo queixando-se de dificuldade progressiva para deglutir, durante todo esse tempo, ela jamais havia sido submetida sequer a uma endoscopia digestiva diagnóstica.

Quis internar no PS do hospital um paciente grave que nos tinha sido encaminhado da UPA do Recanto das Emas, mas recebi o recado que o R1 (residente do primeiro ano) da cirurgia geral do PS se recusava a fazê-lo, em função de orientação que teria recebido de seu preceptor. Ainda bem que o problema foi resolvido antes que eu pudesse cruzar meus bigodes com esse jovem doutor.

Quis internar em nossa enfermaria um paciente crítico, com um câncer muito agressivo lhe obstruindo a veia cava superior, mas não havia vagas no andar. Quis prescrever receitas médicas decentes, mas tivemos que improvisar, pois não havia formulário de receituário disponível no ambulatório. Quis imprimir a observação clínica na impressora, mas tão pouco havia tonner.

Constatei que um paciente no qual fizemos a ressecção de um enorme tumor de parede torácica, à frente do osso esterno, numa cirurgia longa e complexa, apenas cinco meses depois do procedimento, estava com metástases generalizadas em ambos os pulmões e, portanto, condenado a ter somente alguns poucos meses de vida; isso por não ter sido submetido a quimioterapia adjuvante (pós-operatória). Há vários meses – é preciso voltar a frisar – quimioterápicos essenciais estão em falta no principal hospital público da Capital Federal.

Na antessala do ambulatório, tivemos ainda que testemunhar a briga entre dois pacientes que aguardavam consulta conosco, que acabou por requerer intervenção da polícia. Foram às vias de fato dentro do hospital, numa gritaria e baixo nível terrível. Um dos acompanhantes foi levado para a delegacia. As pessoas, compreensivelmente, estão com os nervos à flor da pele.

Amanhã pretendíamos operar um câncer de pulmão, mas teremos que adiar mais uma vez a cirurgia do paciente, porque fomos informados que não teremos vaga de UTI para o pós-operatório (que é essencial).

Gostaríamos, alternativamente, de reoperar o esôfago de uma paciente obesa com enorme hérnia para-esofágica recidivada (na qual o estômago hernia para dentro do tórax), mas não poderemos porque não temos mais grampeadores gastro-intestinais (nem endoscópicos, nem para cirurgias abertas). A SES-DF simplesmente não os adquire, fazendo-nos retornar à década de 70.

Na sexta-feira gostaríamos de operar outros tantos pacientes que aguardam há semanas seus procedimentos, mas, por falta de anestesistas, não nos ofereceram salas cirúrgicas eletivas.

Escalados em procedimentos eletivos, para não vermos nossos salários cortados, teremos que registrar nosso ponto eletrônico mesmo assim, como se estivéssemos trabalhando, sem que tenhamos condições práticas de trabalhar. Ou seja, o ministro da Saúde não mentiu quando afirmou que “médicos brasileiros fingem que trabalham”; só esqueceu de dizer que é exatamente a incompetência dele e dos demais gestores da saúde pública do país que nos obriga a fazer isso.

Que tipo de medicina é essa que estamos praticando? Aonde é que vamos parar? Que tipo de médico estamos formando num sistema desses? Que tipo de profissional irá cuidar de nossos descendentes no futuro? Por que os cidadãos pagadores de impostos não se revoltam e vão para as ruas protestar (tendo às mãos instrumentos extraordinários de mobilização, como as redes sociais)? Como podemos trivializar assim a morte de nossos semelhantes? Até quando vamos tolerar passivamente esse descalabro? O que mais de absurdo precisa acontecer para que as pessoas deixem o sofá da sala e saiam às ruas em protesto? Essas e outras questões me atormentam dia sim, dia também, sem que eu consiga obter respostas minimamente satisfatórias – nem de mim, nem de ninguém.
Está muito triste ser médico no SUS.

Ao Política Distrital (PD), além do desabafo chamou atenção a sensibilidade do médico em relação a poder, enquanto profissional de se manter à medicina o papel principal, salvar vidas. “A medicina, quando exercida com honestidade, competência e compaixão é uma profissão maravilhosa. E aprendemos a vida inteira. Cada paciente é uma aula e um potencial amigo. É bom!”, disse Kleber Cavalcante, a um amigo, em uma rede social.



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