‘Estamos brincando de combater o Aedes aegypti’, diz infectologista da Fiocruz



Por Guilherme Cavalcante e Kemila Pellin

No Brasil, todas as atenções estão voltadas para o mosquito Aedes aegypti. Ao mosquito, é atribuído o contágio de uma tríplice epidemia dos vírus que causam dengue, febre chikungunya e, mais recentemente, o zika vírus. Este, a propósito, tem causado temores, sobretudo a mulheres gestantes, por estar relacionado a caso de microcefalia em fetos – uma má-formação congênita que reduz o tamanho do crânio do bebê e que pode trazer sequelas motoras e de linguagem. A situação, no entanto, tem sido agravada em função de mal-entendidos e de informações falsas sobre prevenção e consequências da doença. Para dirimir estas dúvidas e acalmar os ânimos (ou não), o jornal Midiamax procurou o médico infectologita e diretor da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) em MS, Dr. Rivaldo Venâncio Cunha, para dissipar a nuvem de desinformação sobre a doença. Na entrevita, Rivaldo também comentou sobre o sistema de combate ao mosquito e foi tácito ao afirmar: “estamos brincando de combater o Aedes aegypti”. Confira.

A mídia tem tratado esta nova epidemia como uma ‘tríplice epidemia’, que envolve a dengue, o zika vírus e a febre chikugunya. O que isso significa para a população?

Este termo é referente a três epidemias que estão ocorrendo ao mesmo tempo e que são todas causadas pelo menos agente. Elas não se tornam mais ou menos perigosa por isso. É uma casualidade que estamos vivendo, uma triste coincidência, que é ter os três tipos de vírus transmitidos pelo mesmo mosquito, circulando ao mesmo tempo no país. O que complica é que assim fica mais difícil o atendimento aos doentes, porque os sintomas podem ser confundidos, como no caso da dengue com o zika vírus. E em relação à chikungunya, aqueles casos mais brandos, mais leves, que também podem ser confundidos com a dengue. Mas, as medidas preventivas contra o vetor, que é o Aedes aegypti, são as mesmas.

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Já existe consenso sobre como o zika vírus chegou ao Brasil?

Não tem como saber com certeza, mas uma das hipóteses é que a doença tenha chegado ao país durante a Copa do Mundo, ano passado.

Estamos ouvindo muitos boatos em relação ao zika vírus e à microcefalia, por exemplo, de que crianças de sete anos, se contrairem zika, podem ter microcefalia. O que é mito e o que é real em relação a esta combinação?

Neste caso que você citou, não existe nenhum relato científico aqui no Brasil de pessoas dessa idade que tenham desenvolvido microcefalia. Isso é tão absurdo que para se desenvolver microcefalia o cérebro teria que murchar. As pessoas também deliram, acreditam em coisas sem fundamento. É uma lamentável que estas informações circulem, pois quem publica esse tipo de notícia ou corrente está fazendo um desserviço. E a população precisa ter um pouquinho de bom senso para discernir as coisas e procurar sempre fontes oficiais

Outra dúvida comum são mulheres grávidas que tiveram zika e que tem medo de amamentar o bebê. Isso tem fundamento?

Veja bem. Já ouve a identificação do material genético do vírus em pouquíssimos casos no leite materno. Mas não eram ‘partícula viável’, como nós chamamos tecnicamente, porque os pesquisadores tentaram replicar o vírus no laboratório e não conseguiram. Isso acontece muito na virologia.  Às vezes, você faz identificação de algum material genético, mas aquilo não é viável, não se reproduz e não contamina. O que nós sabemos cientificamente até agora é apenas que foram encontrados ‘restos’ do zika em dois ou três casos, ou seja, é algo muito raro. E ainda assim, elas não contaminavam. Ou seja, não há evidência para que se recomende suspender a amamentação.

O que se sabe de concreto sobre a relação da zika com a microcefalia?

Primeiro, o conhecimento histórico de que o vírus gosta do sistema nervoso central. Há publicações científicas que reproduzem resultados de experimentos em camundongos no final da década de 1940 e essas pesquisas mostraram que o vírus gostava do sistema nervoso central do camundongo. Então, tem essa evidência lá de trás. Aqui no Brasil, foi identificado em líquido amniótico de duas mulheres que estavam grávidas e que tinha o diagnóstico de  microcefalia por meio de ultrassonografia de seus fetos. Foi feita a punção, aspirado o líquido e constatado que ali tinha RNA, ou seja, material genético do vírus. E, posteriormente, algumas semanas depois, houve uma criança que nasceu com microcefalia no Ceará e que infelizmente foi a óbito. Na autópsia, viu-se que nos tecidos desta criança também estava presente o zika. Depois que o Brasil noticiou para o mundo essa manifestação clínica nova da doença, ou seja, alterações congênitas decorrentes do contato com o vírus, as autoridades sanitárias da Polinésia francesa foram rever seu banco de dados, porque tinha tido uma epidemia de zika no local e viram que lá também tinha tido aumento no número de microcefalia e que até então não tinha percebido.

Segundo Rivaldo, o tratamento da microcefalia precisa ser feito por equipe multidisciplinar (Divulgação)
Segundo Rivaldo, o tratamento da microcefalia precisa ser feito por equipe multidisciplinar (Divulgação)

Já se sabe até quanto tempo de gestação o feto está vulnerável à má formação?

É provável que haja um momento em que as sequelas diminuem, mas, ainda não se sabe até que momento pode ser. Nós trabalhamos seguindo analogia ao vírus da rubéola, que normalmente, quando a infecção do feto ocorre no primeiro bimestre, há mal-formações graves. Quando acontece no primeiro trimestre, são alterações brandas, leves. Então, estamos trabalhando com essa perspectiva. De qualquer forma, é necessário que se observe atentamente todas essas situações: todas essas grávidas que foram expostas ao vírus zika, e que acompanhemos as crianças que vão nascer para observar a intensidade das alterações.

Já existe algum indício de que uma mulher ou menina, sem estar gestante e que contrai a doença, vai poder engravidar?

Em tese, o vírus não ficaria no corpo da pessoa, mas não há certeza disso ainda. Isso porque o vírus é de uma família de vírus, de um gênero, que tem dengue, zika, febre amarela, Febre do Nilo Ocidental e hepatite C. Nele, tem vírus que não ficam no organismo humano, como a dengue, e tem que permanece por longo tempo, como no caso da hepatite. E a gente não sabe ao certo se ele vai tender mais para o lado do dengue ou da hepatite. Acreditamos que seja mais para o dengue, pelo fato dos dois serem transmitidos pelo mesmo mosquito, mas ainda não há comprovação.

Além da prevenção ao mosquito, quais as recomendações durante o tratamento?

Nós, profissionais da saúde, temos primeiro que acolher as famílias. Não é só a criança, mas toda a família. Isso porque toda má formação é algo que mobiliza a família inteira. Então temos que estar preparados cada vez mais para promover os cuidados, o acompanhamento, o carinho e a solidariedade que esta família necessita. Há todo um protocolo do Ministério da Saúde, que está sendo publicado, que fala quais os exames que tem que ser feitos para dimensionar a má-formação etc. Mas vamos precisar que uma equipe multiprofissional muito ajustada entre as diversas categorias da saúde esteja envolvida. Vai precisar do médico e também da enfermeira. Vai precisar do fisioterapeuta e do fonoaudiólogo. E da mesma forma, não poderemos prescindir, por exemplo, da presença do psicólogo, para dar suporte à família. Vamos ter que exercer um princípio que é do SUS (Sistema Único de Saúde), que é a integração destes profissionais, e ver que ali não é apenas uma criança com microcefalia, mas um ser humano cuja família também precisará de suporte.

Como podemos destacar o papel do poder público no combate ao mosquito, já que essa epidemia não é uma coisa nova? Onde está o erro?

O erro está no modelo de desenvolvimento econômico que o brasil adotou a 500 anos. Não é um erro do gestor atual, mas deste processo de desenvolvimento econômico, que privilegia o crescimento urbano acelerado e desorganizado sem o devido suporte dos instrumentos necessários para a tender a população, como, por exemplo, coleta regular de resíduos sólidos, fornecimento de água de modo regular para consumo doméstico e a própria distribuição geográfica de vários espaços.

O senhor pode citar um exemplo?

Um exemplo é que algumas favelas brasileiras, que estão ali há décadas, não receberam absolutamente qualquer projeto de urbanização. Não tem como o poder público, depois de tantos anos de apartheid social que foi feito nessas favelas, manter um controle de vetor. Se você abrir o Google e procurar uma fotografia de Paraisópolis, em São Paulo, ou da Rocinha, no Rio de Janeiro, você vai ter a clara noção de que é impossível ter um controle de vetor numa comunidade dessas. Por outro lado, nós temos que ter consciência de que estamos diante de um evento de extrema gravidade do ponto de vista de saúde pública, que poderá marcar uma geração de brasileiros, da mesma forma como marcou a poliomielite. E talvez não seja exagero dizer, mas também como marcou o HIV, só que em crianças.

No combate ao Aedes aegypti, a educação da população também é um fator a ser explorado?

Sim, mas não a educação de ensino regular. Veja só, se você andar pela rua, vai cansar de ver gente jogando latinha fora do lixo. Enquanto persistir isso, não tem solução. A gente tem que se conscientizar. O brasileiro tem isso de se apegar a ilusões, só que a realidade nos confronta. Sabe o jogo do Brasil com a seleção alemã, o 7 a 1? Então. Nós estamos brincando de controlar o Aedes aegypti nesses trinta anos que tem dengue no Brasil. Tem todo esse tempo e nós estamos perdendo de 7 a 1 na luta contra esse mosquito. Nós estamos usando uma estratégia que não está dando certo. É claro que uma coisa ou outra, prefeito A ou prefeito B, uma greve na coleta do lixo, enfim, podem contribuir para a situação. Mas, para além disso temos que refletir o que está no cerne da questão, se é que queremos resolver o problema.

Fonte: Midiamax



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