Por Thiago Dhatt
Quando o hoje presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), chegou ao poder em 2003, levou consigo a estreita relação com os movimentos sociais de massa, a exemplo do MST (dos sem-terra), CUT (Central Única dos Trabalhadores) e UNE (União Nacional dos Estudantes) o que contribuiu para a relativa tranquilidade de sua gestão, que focou na base parlamentar do Congresso e de setores do mercado de forma a alcançar a governabilidade. No entanto, ainda era perceptível o incômodo de parte da esquerda na estranha relação das bases sociais com o governo e o diálogo com históricas lutas.
Com o golpe parlamentar que derrubou ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016, veio o rompimento da institucionalidade governamental com os grandes movimentos sociais. O resultado foi instantâneo e, nos últimos 6 anos, assistimos a grandes retrocessos que abalaram as organizações. Estiveram na mesa pautas que enfraqueceram ou desmontaram programas sociais, a exemplo do “Minha Casa Minha Vida”, “Farmácia Popular”, “Ciência sem Fronteiras”, à CLT (Consolidação das leis do trabalho) com a Reforma Trabalhista, a Reforma da Previdência que retirou direitos previdenciários, o congelamento dos investimentos públicos por 20 anos, a abertura do pré-sal e o fatiamento da Petrobras, privatizações, o enfraquecimento dos bancos públicos dentre tantos outros que afetaram, sobretudo, os trabalhadores e as pessoas mais vulneráveis, trazendo de volta, inclusive, a fome com a inserção de 33 milhões de pessoas em insegurança alimentar grave.
A vitória, nas urnas, do ex (e agora futuro) presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), reacendeu o sentimento de que os movimentos sociais ocuparam um papel protagonista em diversas resistências e enfrentamentos, não apenas nas manifestações contra o processo de impeachment, mas também em todo o processo que envolveu a prisão política de Lula até sua libertação em 2019. Com o sentimento, vieram as declarações de Lula sobre a necessidade de dar mais voz às organizações sociais. Atualmente, movimentos como MST (dos sem-terra), MTST (dos sem-teto) participam dos grupos de trabalho que discutem a composição do futuro governo e têm a perspectiva de ocuparem pastas como Ministério das Cidades, com Guilherme Boulos (MTST) e Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), com Valmir Assunção (MST). Também está sendo criado o Ministério dos Povos Originários que provavelmente será ocupada pela deputada eleita, a indígena Sônia Guajajara.
Durante encontro com lideranças dos povos originários, na última Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP-27), Lula reafirmou o desejo de ter indígenas ocupando cargos no governo. Segundo Lula, é importante que haja representantes dos povos originários ocupem cargos de liderança em órgãos como o da saúde indígena (hoje vinculada ao Ministério da Saúde). É neste momento que surge a baiana Luzia Pataxó, principal cotada para ocupar o cargo da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas no Sistema Único de Saúde (SUS).
Luzia é uma liderança indígena ao estilo tradicional de construção de base; demandada por seus parentes (termo indígena utilizado para chamar outros indígenas compartilham de alguns interesses comuns, como direitos coletivos, a história de colonização e a luta pela autonomia sociocultural), pois sempre aprovam suas indicações (como a de Luzia) após debates e assembleias. Crescida e criada em sua aldeia, onde reside até hoje, seus mais de 20 anos de atuação na área da Saúde, sua área de formação, a qualificaram ao posto que atende cerca de 800 mil indígenas aldeados em todo o Brasil.
Filiada ao PT e ex-vereadora por dois mandatos em Santa Cruz de Cabrália, mesmo local onde aportaram os navios de Pedro Álvares Cabral, em 1500, que deu origem à exploração e colonização portuguesa que exterminou milhões dos parentes indígenas de Luzia. Pataxó também é a etnia de Galdino, aquele indígena que numa fatídica madrugada em Brasília, em 20 de abril de 1997, após participar de eventos do Dia do Índio, foi queimado vivo e assassinado por jovens brancos da classe-média-alta brasiliense. Sua morte provocou protestos e um intenso debate acerca dos direitos dos povos indígenas.
Simbolicamente, a etnia Pataxó representa muito sobre o Brasil e de como os não-indígenas têm tratado historicamente os povos originários nesse país; explorando-os, assassinando-os, oprimindo-os de seus direitos e acessos. Também simbolicamente Luzia Pataxó pode representar os novos tempos de reparação histórica e de um novo governo; empoderando uma indígena, mulher, mãe e oportunizando seu acesso a um setor que não lhe falta experiência, formação e currículo, antes ocupado por brancos “tecnocratas” detentores da suposta capacidade. E aos povos indígenas, uma representação indígena, que vive como eles e luta por eles. O tão conhecido “lugar de fala”. Parece que a esquerda evoluiu. Que venha o tempo das mudanças!
*Thiago Dhatt é Analista político e Antropólogo