Médico da “máfia das próteses” pede dica de como “enrolar” paciente



Grupo lucrava ao fazer cirurgias ‘desnecessárias’ no DF, diz Polícia Civil
Esquema movimentou mais de R$ 30 milhões em 5 anos, diz investigação

Escutas telefônicas obtidas pela Polícia Civil do Distrito Federal e reveladas pelo Fantástico mostram a conversa entre um médico e um fornecedor de órteses e próteses sobre como continuar “enrolando” um paciente e faturar mais. Eles são suspeitos de integrarem uma organização criminosa que lucrava com a prescrição de cirurgias sem necessidade. De acordo com a polícia, o esquema movimentou mais de R$ 30 milhões nos últimos cinco anos. As pessoas e empresas citadas negam irregularidade.

A conversa é entre o médico Juliano Almeida e Silva e o empresário Micael Bezerra Alves, um dos sócios da TM Medical, empresa que fornecia as próteses. A companhia é suspeita de oferecer materiais superfaturados, vencidos ou de baixa qualidade.

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Médico: Eu estou tentando melhorar aqui, entendeu? O que mais a gente pode colocar aqui?
Fornecedor: É…
Médico: O que mais a gente pode colocar aqui? Botei bipolar, botei brill, dois drill, botei mostático, botei motorização, equipo de ligação. O que mais?
Fornecedor: Essa cânola. O que que é? Debridação?
Médico: É a canolazinha que vem no kit da assectomia. Aí é só para enrolar mesmo.

Os dois fazem parte do grupo de 13 pessoas presas na operação, que também apreendeu R$ 220 mil e US$ 90 mil. “Os áudios vão mostrando que os médicos têm um profundo envolvimento e um desejo sempre de ganhar dinheiro”, disse o promotor Maurício Miranda sobre as escutas.

De acordo com as investigações, os médicos envolvidos no esquema encaminhavam os pacientes para fazer as cirurgias principalmente no hospital Home, na Asa Sul. Um dos funcionários, Antônio Márcio Catingueiro Cruz, fazia contato com um representante da fornecedora, Micael Alves. Segundo a polícia, o dinheiro pago pelos planos de saúde era dividido entre o grupo.

Após uma série de denúncias divulgadas pelo Fantástico desde janeiro de 2015, os suspeitos foram obrigados a mudar de estratégia, diz a polícia. “A partir de então, passaram a utilizar o pagamento em espécie para tentar de alguma forma evitar o rastreamento”, contou o delegado que investiga o caso, Adriano Valente.

Vítimas
A estimativa é de que pelo menos 60 pessoas tenham sido vítimas do golpe só neste ano. No entanto, a polícia informa que dezenas de pessoas têm procurado as delegacias desde a última quinta-feira (1º), quando foi deflagrada a primeira fase da operação Hyde – em alusão ao médico que virou monstro na literatura e no cinema.

Uma delas é a mulher que relata quase ter morrido por causa de um fio-guia (por onde passam cateteres) deixado no pescoço dela. A polícia investiga se ela foi alvo de tentativa de homicídio. Ao G1, ela tinha relatado que se sentia “usada” pelos médicos. “Não me viram como uma paciente. Não me tratavam como uma vida e sim como algo que estava gerando lucro.”

Outra vítima, que perdeu os movimentos do corpo, afirma que o grupo “tem brincado com a vida das pessoas”. “Isso é muito triste porque a gente não pode contar com uma pessoa que diz que se formou para poder ajudar, para poder estar ali, melhorando a vida de uma pessoa com dores ou com outros tipos de problema”, lamentou. “Para mim, são monstros.”

Repercussão
Presidente do Sindicato dos Médicos do DF, Gutemberg Fialho disse que, se as denúncias forem comprovadas, os médicos devem ser punidos severamente. “Essa prática de indicar procedimentos desnecessários e superfaturados expõe pacientes a risco e aumenta os custos de operação. Isso é ruim quando acontece no sistema público e também é quando ocorre no sistema privado, na medicina suplementar, pois o usuário acaba pagando um preço elevado.”

O Conselho Regional de Medicina informou que vai abrir sindicância para apurar a denúncia do ponto de vista ético e profissional. Se confirmados os indícios, um processo contra os médicos envolvidos pode ser instaurado.

No sábado (3), a Justiça liberou 5 dos 13 envolvidos. São eles os médicos Henry Campos, Leandro Flores, Rogério Gomes Damasceno e Wenner Costa Catanhêde e a empresária Mariza Martins. Eles conseguiram habeas corpus e devem responder ao processo em liberdade.

Próteses e órteses
Próteses são dispositivos usados para substituir total ou parcialmente um membro, órgão ou tecido. Órteses são utilizadas para auxiliar as funções de um membro, órgão ou tecido do corpo. De uso temporário ou permanente, as órteses evitam deformidades ou o avanço de uma deficiência médica. Um marca-passo, por exemplo, é considerado uma órtese implantada.

Esquema nacional
A fraude envolvendo órteses e próteses nacionalmente denunciada pelo Fantástico, da TV Globo virou tema de uma CPI na Câmara dos Deputados. Em janeiro do ano passado, o programa mostrou que médicos indicavam cirurgias e o uso de próteses a pacientes mesmo quando não era necessário. Em troca, recebiam comissões de até R$ 100 mil das empresas fornecedoras.

“Na maior parte das vezes, os dispositivos médicos implantados são usados em situação de urgência e emergência. Muitas vezes o paciente não tem condição de avaliar o melhor caminho”, disse o então ministro da Saúde, Arthur Chioro, em julho de 2015.

Um grupo de trabalho criado pelo ministério apurou que o mercado de produtos médicos movimentou 19,7 bilhões em 2014. Desse total, R$ 4 bilhões são relativos aos chamados dispositivos médicos implantados, que englobam órteses e próteses. A venda desses aparelhos aumentou 249% entre 2007 e 2014.

Chioro disse que a ausência de padronização, protocolos e um banco de preços criava margem para “comportamentos oportunistas” de especialistas, que têm total controle da escolha dos aparelhos.

O relatório encontrou diferenças de preços de implantes em regiões do Brasil e também no comparativo com outros países. Um marca-passo na região Norte, por exemplo, custa R$ 65 mil. No Sul, o preço cai para R$ 34 mil. Entre o Brasil e a Alemanha, a diferença no valor de implantes de cóclea é de quase seis vezes.

Nos hospitais, foi percebido que o médico ganha com comissão paga pelas empresas de dispositivos médicos. A prática é proibida pelos conselhos de medicina. Também foi apontado que hospitais comercializam esses produtos com margem de faturamento de 10% a 30%.

Versão dos envolvidos
Rogério Damasceno: o advogado do médico, Pedro Ivo Veloso, diz que as suspeitas são “completamente infundadas”.
Juliano Almeida e Silva: em nota, o médico afirma que os trechos divulgados na escuta estão descontextualizados e que não participa de qualquer procedimento duvidoso.

Johnny Wesley Martins: a defesa do médico declara que ele não operou nenhum dos pacientes vinculados à denúncia e que não é sócio da TM Medical.

Hospital Home: a defesa do hospital afirma que o estabelecimento age dentro da legalidade, que não tem qualquer pagamento de forma ilícita, seja partindo do hospital ou para o hospital.

TM Medical: a fornecedora informa que não foram utilizados materiais da empresa em nenhuma das cirurgias denunciadas.

O advogado do sócio da TM Medical Micael Bezerra Alves não foi localizado.

Fonte: G1



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